quarta-feira, outubro 29, 2003

Uma dúvida marxista

Ler Marx torna-nos mais ricos? Se sim, não nos tornamos desse modo inimigos da classe operária?

(Esta já deve ter barbas. Deve estar num FAQ sobre o assunto.)

Marx para o terceiro milénio

"O homem que só encontrou o reflexo de si mesmo na realidade fantástica da televisão, onde buscava um super-homem, já não se sentirá inclinado a encontrar somente a aparência de si próprio, o não-homem, já que aquilo que busca e deve necessariamente buscar é a sua verdadeira realidade.

A televisão não faz o homem, mas, ao contrário, o homem faz a televisão: este é o fundamento da crítica contra a televisão. A televisão é a autoconsciência e o autosentimento do homem que ainda não se encontrou ou que já se perdeu. Mas o homem não é um ser abstrato, isolado do mundo. O homem é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade. Este Estado, esta sociedade, engendram a televisão, criam uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A televisão é a teoria geral deste mundo, seu compêndio enciclopédico, sua lógica popular, sua dignidade espiritualista, seu entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene, sua razão geral de consolo e de justificação. É a realização fantástica da essência humana porque a essência humana carece de realidade concreta. Por conseguinte, a luta contra a televisão é, indirectamente, a luta contra aquele mundo que tem na televisão seu aroma espiritual.

A miséria da televisão é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela. Ver televisão é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espirito. É o ópio do povo.

A verdadeira felicidade do povo implica que a televisão seja suprimida, enquanto felicidade ilusória do povo. A exigência de abandonar as ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões. Por conseguinte, a crítica da televisão é o germe da critica do vale de lágrimas que a televisão envolve numa auréola de santidade.

A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas para que se liberte das cadeias e apanhe a flor viva. A crítica da televisão desengana o homem para que este pense, aja e organize sua realidade como um homem desenganado que recobrou a razão a fim de girar em torno de si mesmo e, portanto, de seu verdadeiro sol. A televisão é apenas um sol fictício que se desloca em torno do homem enquanto este não se move em torno de si mesmo.

Assim, superada a crença no que está além da verdade, a missão da história consiste em averiguar a verdade daquilo que nos circunda. E, como primeiro objectivo, uma vez que se desmascarou a forma de santidade da autoalienação humana, a missão da filosofia, que está ao serviço da história, consiste no desmascaramento da autoalienação nas suas formas não santificadas. Com isto, a crítica do céu televisivo converte-se na crítica da terra, a crítica da televisão na critica do direito, a crítica da comunicação social na crítica da Política. "

Karl Marx, "Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel"

É fantástico o efeito do search & replace.

Mefiez-vous des morceaux choisis

Há muitos, muitos anos, antes do 25 de Abril, a capa de uns caderninhos da escola primária citava a frase de Pessoa "Minha pátria é a língua portuguesa". Lembro-me do meu espanto quando conheci o seu contexto:

"Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente."

Ainda hoje pergunto-me por que motivo o Estado Novo escolheu aquela frase e não a última, que é muito mais gira.

Estava a tentar encontrar qualquer coisa para implicar com este post d'A Aba de Heisenberg (não perde pela demora) quando resolvi pesquisar no Google "opium+people+Marx" (para "a religião é o ópio do povo"), só para ver o que dava. Há coisas com piada, como esta, onde fui buscar o contexto da frase:

"Religious suffering is, at one and the same time, the expression of real suffering and a protest against real suffering. Religion is the sigh of the oppressed creature, the heart of a heartless world, and the soul of soulless conditions. It is the opium of the people."

Mefiez-vous des morceaux choisis. Fiquei mais rico.

(Os marxistas desculpar-me-ão tamanha ignorância mas, como escrevi num post anterior, só conheço a tendência Goucho.)

domingo, outubro 26, 2003

Uma proposta (português) suave

Os fumadores são assassinos suicidas e os não fumadores são fundamentalistas clean estúpidos. Bom, esta parece-me uma boa base para que possamos chegar a um acordo.

Isto é muito óbvio, mas a questão do fumo só se põe no espaço público fechado. Por isso, não se trata de saber se fumar faz bem ou mal (uma questão privada entre cada um e o seu médico), mas sim como é que pessoas com atitudes distintas podem ocupar esse espaço.

Não me parece admissível que o Estado se intrometa na definição da política de fumo de espaço públicos, para além daqueles óbvios em que já o fez. Mas parece-me admissível que obrigue cada gestor particular a fazê-lo. Ou seja, cada espaço deve definir claramente à entrada, pela sinalética apropriada, qual a sua política de fumo. Depois, basta deixar o mercado funcionar. Não é o que fazemos sempre?

Além disso, é estúpido que seja apenas proibido fumar, ou não. Sugiro algumas variantes:

1. É legalmente proibido fumar (símbolo tradicional);
2. É proibido fumar por decisão do estabelecimento (símbolo tradicional a verde);
3. É condicionalmente permitido fumar caso ninguém lhe peça para apagar o cigarro (ponto de interrogação sobre o cigarro);
4. É permitido fumar (símbolo tradicional);
5. Associação entre 2 e 4: temos espaços para fumadores e não fumadores;

(Eu sei, podemos criar variantes risíveis. É para isso que pagamos aos humoristas.)

Se isto não for feito pela "sociedade civil" o Estado acabará por decidir, e decidirá mal, naturalmente. E culpamos os eurocratas pelo nosso desleixo.

Desculpar-me-ão os fumadores, mas nos espaços que somos obrigados a partilhar (trabalho, por exemplo) deve ser permitido fumar apenas naqueles em que todos os ocupantes habituais fumam.

quinta-feira, outubro 23, 2003

Peço desculpa

Peço desculpa pelos posts de hoje. Acordei virado à esquerda, e é o que se vê. Prometo que não torno, e um dia destes compenso.

Heil, camaradas! (gosto destas expressões que fazem curto circuito).


Valores de Mercado 008/03

Se, num acto de tresloucada decência, a Brisa anunciasse que passaria a não cobrar aos seus clientes serviços que na realidade não presta (o serviço de auto-estrada nos lanços em obras), as suas acções cairiam imediatamente, por quebra nos lucros esperados.

Isto é uma lei básica de mercado, mas nunca deixa de me maravilhar o modo extraordinário como a Bolsa premeia comportamentos de rapina, desde que esses comportamentos se convertam em lucros para os accionistas.

Mas... accionistas não são os muitos que têm acções da Brisa? Não. Isto não é uma edição revista e actualizada do quadro "Olívia costureira e Olívia patroa".

Accionistas são os que ganham dinheiro na bolsa, os que são profissionais do dinheiro. Os outros, os pequenos subscritores com miragens de dinheiro fácil, são apenas idiotas úteis que servem de figurantes no teatro do capitalismo popular e perdem as suas economias numa peça que não é deles.

Valores de Mercado 007/03

A questão do capitalismo popular tem piada (ok, muitos estão escaldados e não acham).

O pináculo desta catedral foi a privatização da EDP. Qualquer um podia comprar acções e, com a tendência positiva da Bolsa, só quem fosse muito parvo não seria rico em poucos meses. Muitos endividaram-se alegremente apoiados nas generosas promoções dos bancos. O que aconteceu? Ganharam os do costume. Para os bancos era uma win-win situation. Os papalvos continuam a pagar o empréstimo. Mas quem se preocupa com loosers, anyway?

Esta é uma face da moeda.

A outra é ainda mais ridícula. Os que ainda acreditam que vão ganhar alguma coisa acolhem com euforia notícias sobre eventuais aumentos de preços da electricidade, e manifestam-se desagradados com quaisquer reduções. É de doidos.

O capitalismo popular tem, por isso, uma enorme vantagem sobre as formas de capitalismo primitivas: cria uma ilusão de posse que elimina a mais ténue tentativa de indignação face às práticas das empresas das quais temos acções. Como posso eu, do alto das minhas duas acções da EDP, reclamar contra o preço abusivo da electricidade?

Geração Rasca Revisited

À luz dos acontecimentos recentes, deveríamos reavaliar o conceito de "Geração Rasca". IMHO, a geração que estamos a formar parece-me uma digna sucessora da geração actual.

Razões para amar Portugal / 3

O excelente texto de Alexandre Monteiro mostra como os traços culturais que mais nos definem têm uma longa tradição, que remonta, pelo menos, ao século XVI.

Ora digam-me lá: quantas nações se podem orgulhar de uma tal coerência cultural?

(Não sei se já perceberam que os outros nos acham um pouco maníacos da perfeição, em especial no que concerne ao aperfeiçoamento dos defeitos.)

quarta-feira, outubro 22, 2003

Corolário

Corolário do post anterior:

Um problema é tanto mais verdadeiro quanto mais gente tiver opinião sobre ele. Por exemplo, a Casa Pia é um verdadeiro problema. A desorganização do território é um falso problema, porque poucos têm opinião sobre o assunto.

Cada país tem as opiniões que merece.

terça-feira, outubro 21, 2003

Fórmula de definição da opinião pública

Opinião Pública=Nível de Instrução+Opinion Makers seleccionados+Desinformação+Componente Aleatória

A verdade e a informação não entram na equação.

Exemplo:

Gostaria de me lembrar de quem foi, mas não me lembro. Era um dos nossos doutos comentadores políticos. Dizia ele, para justificar a sua opinião favorável à intervenção no Iraque, que a geologia tornava a exploração de petróleo particularmente difícil, pelo que não seria por petróleo que os Estados Unidos optariam pela guerra.

Uns dias depois, numa entrevista, salvo erro na BBC, um geólogo com experiência na área da prospecção petrolífera dizia que não havia qualquer problema de prospecção no Iraque, do ponto de vista geológico.

Neste artigo, podemos ler isto:

"Still, the estimated success rate in Iraq ranges from one in two in the Mesopotamian Basin to one in four in the western and northwestern stable platform, with the overall success rate exceeding 72 percent — perhaps the highest success rate achievable anywhere in the world. Oil exploration costs are among the cheapest globally, with the current cost estimated at around 50 cents per barrel."

Este é um exemplo particularmente simples e desavergonhado de manipulação, melhor, de mentira, para o apoio à argumentação. Quantas vezes a demonstração da mentira é impossível de realizar?

Hoje em dia, toda a gente tem opinião, seja sobre o que for. Isto confunde-me. Há uma ilusão de conhecimento que não é sujeita à mais pequena dúvida metódica. Estranho. O problema deve estar em mim, que só tenho dúvidas. Disso tenho a certeza.

domingo, outubro 19, 2003

Razões para Amar Portugal / 2

The New York Times, The Guardian, El Pais, Time...

Uau! Portugal está mesmo na moda!



sábado, outubro 18, 2003

Estudar no estrangeiro

Uma perguntinha do Bloguítica Nacional: "Se o ensino superior tem 'qualidade', então por que razão quem pode vai estudar para o estrangeiro?"

Resposta: Num post anterior recordei o livro de Raymond Boudon, "L'inégalité des chances", o qual demonstrou, há 30 anos, que a escola não reduz as assimetrias sociais. Como é evidente, a massificação do ensino superior desvaloriza a licenciatura (lei básica de mercado: bens raros são caros). Por isso, "quem pode" continua a estudar, em mestrados, pós-graduações e doutoramentos. Ou, pelo menos, obtém uma licenciatura numa universidade estrangeira prestigiada. Assim, as posições relativas mantêm-se. Elementar, meu caro.

O Melhor dos Mundos Possíveis

Não percebo a celeuma à volta dos novos manuais escolares. Aliás, estou firmemente convencido que são os melhores manuais que poderíamos ter. Vejamos porquê.

Em Democracia, o povo escolhe o partido que, num determinado momento histórico, melhores garantias dá de bem governar. O Governo saído de eleições é, por isso, o melhor Governo possível. Podemos nós, meros espectadores, afirmar que as suas decisões não são as mais correctas? É claro que não.

No sector da educação, cabe às editoras elaborar os manuais escolares que concretizam as opções políticas do Governo. As editoras, que actuam num mercado extremamente competitivo, não podem deixar de escolher os melhores autores, que lhes garantam o melhor produto, mais próximo dos objectivos do Governo, ao mais baixo custo, aumentando assim as suas vendas.

As escolas, procurando atrair os melhores estudantes e apostando num ensino de excelência (como poderiam não o fazer?) de forma a subirem no ranking do Ministério, escolhem os melhores manuais.

Os professores, dentro do mesmo espírito, tiram o máximo partido do manual seleccionado, complementando-o com os seus próprios textos e com as experiências enriquecedoras que os alunos trazem de casa.

Tudo isto parece-me de uma evidência cristalina. Por isso, não entendo tanta discussão, nem percebo o azedume de um certo Voltaire exaltado que anda por aí.

(Fui inspirado(?) por um post muito interessante do Liberdade de Expressão.)

quinta-feira, outubro 16, 2003

Acordar

Nunca perceberei quem liga o buzz do despertador ou do telemóvel e salta da cama só com o susto. Ainda mais estranho é um buzz periódico, que equivale à tortura multiplicada e consentida.

Estes segundos devem ser tratados com a mesma cautela com que o mergulhador volta à superfície, lentamente e com um período de descompressão que, no meu caso, dura exactamente meia hora. Essa meia hora alegra-me com as expectativas do dia, e conforta-me das certezas desagradáveis.

Um destes dias comprarei um despertador com MP3, para ter total controlo sobre o som que me acorda. Para já, apenas tenho a alternativa entre o buzz e uma estação de rádio. Mas qual estação de rádio? Difícil escolha! Lembro-me de, há alguns anos atrás, ter testado a Antena 2. Triste ideia! Em vez de vir suavemente à superfície, Mozart mergulhava-me cada vez mais fundo e o peso do cobertor tornava-o impossível de mover. Até que um dia fui selvaticamente acordado pelas Valquírias e andei eléctrico todo o dia (julgava até então que era proibido passar Wagner na rádio antes das oito da manhã).

Desisti da Antena 2 e durante anos deleguei a responsabilidade de me acordar à TSF. Gostava de ouvir os comentadores lá no fundo, e concordava sempre com o que diziam, mas quando chegava à superfície já não me lembrava de nada. Excelente! Mas cansei-me. Cansei-me de ver (ouvir) a minha sagrada meia hora profanada por quantidades crescentes de publicidade, consistindo boa parte dela de diálogos entre mentecaptos.

No último ano ouvi a Antena 1. Não tem publicidade e por vezes começam os noticiários com temas interessantes de cultura e ciência, que não têm nada a ver com a agenda do dia. Isso é bom. Mas, após a alteração da grelha, a minha meia-hora, das 7:30 às 8:00, é quase totalmente ocupada por um jornal de desporto, o que significa que os mentecaptos voltaram por outra via. E isso é mau. Não quero acordar mais cedo nem posso acordar mais tarde, pelo que o meu casamento com a Antena 1 está a terminar.

A partir de segunda-feira vou dar uma oportunidade à Radar. Deve ter alguma publicidade, mas talvez seja suportável. Se falhar, já sei o que vou receber no Natal: um reluzente despertador MP3.

quarta-feira, outubro 15, 2003

Razões para Amar Portugal / 1

Em Portugal, onde quer que nos encontremos estamos a poucos minutos do Belo absoluto. Basta estar num lugar escuro ao ar livre e olhar para cima.



Ok. Todos os países têm estrelas. Mas o Belo absoluto a que me refiro é a capacidade de resistência das nossas estrelas.

Até agora não houve um único Plano Director Municipal que as tenha destruído! Um grande Viva! às nossas estrelas.

terça-feira, outubro 14, 2003

Leituras a voar

No post "Leituras de Avião", JPP fala de um artigo no Figaro sobre um estudo do sistema escolar francês. Uma das conclusões que para JPP é interessante "é a clara manutenção da diferenciação social em todo o percurso escolar, apesar da forte pressão igualitária (e se calhar por isso mesmo) da escola".

Esta história de a escola reduzir as desigualdades sociais é uma das grandes "ficções sociais" das democracias, tal como a "ascensão pelo mérito".

Pensava eu, na minha inocência, que Raymond Boudon em "L'inégalité des chances", em 1973, isto é, há 30 anos, tinha demonstrado que não há qualquer redução da diferenciação social por essa via. Afinal a notícia ainda não era conhecida de todos, em especial dos franceses. Estranho.


"Language is a Virus"

No livro "The Language Police", Diane Ravich mostra como o politicamente correcto entrou nos manuais das escolas americanas, começando com um louvável propósito de não discriminação e tornando-se num monstro feito de textos absurdos, proibições idiotas e envio para index de muitos dos clássicos americanos.


Um exemplo citado num artigo da cnn: "She says a lot of people are having fun finding new titles for Ernest Hemingway's "The Old Man and the Sea" which presents problems with every word except "and" and "the." Ravitch said old is ageist, man is sexist and sea can't be used in case a student lives inland and doesn't grasp the concept of a large body of water. "

Isto seria absolutamente ridículo, se não fosse absolutamente trágico. É uma versão real do "Newspeak" de "Mil novecentos e Oitenta e Quatro", como aliás refere a própria autora.

O conteúdo destes manuais é uma decorrência da actividade dos vários grupos de pressão nos Estados Unidos, quer arrumados globalmente entre esquerda e direita, quer tudo o que são minorias de qualquer espécie.

Parece-me evidente que o que se ensina na escola decorre de certas condições sociais específicas. O que torna a nossa situação muito semelhante à dos Estados Unidos. Em Portugal não há grupos de pressão, há conluios na sombra entre os vários poderes. Mas há um poder visível, que é o das televisões, que têm tanto mais poder quanto mais analfabetos forem os seus clientes.

A polémica relacionada com os manuais de português parte por isso de uma premissa errada: que isto é um fenómeno estranho, que deve ser rapidamente corrigido, e o Big Brother não deve voltar a entrar nos manuais. Mas o Big Brother não é, ao contrário do que gostariam certas elites (as que não o vêem) um objecto estanque, que fica ali naquela caixa, que a sua influência é nula. Infelizmente para elas, o Big Brother e outro lixo não só formata comportamentos como tende a espalhar-se como um virus. A escola é um dos organismos com menos mecanismos de defesa.

É tudo muito natural.

Haiku

Será a palavra japonesa para "homorróidas"?

Eh pá, desculpem lá este trocadilho de merda. Aqui a direcção do blog fez alguns estudos de audiência e chegou à conclusão que nem o volume, nem o perfil dos nossos leitores é compatível com as margens de lucro esperadas pelos nossos accionistas, e decidiu tomar algumas medidas drásticas, não sei se tão a ver.

Primeiro, os gajos lá de cima começaram a pressionar-me para ser mais alarve e mandar uma bocas foleiras para atrair os Jovens (ei! Jovens, venham agora consumir para aquiiiii!). Parece que os estudos feitos pelos media que querem atrair os Jovens chegam à conclusão que todos os Jovens são mentecaptos, e a programação é desenhada com esse pressuposto.

Segundo, tenho que ler e escrever "à Jovem". A parte do "ler" é mais difícil, porque tenho que ler menos. A parte do "escrever" obriga-me a fazer um exame de português com base nos novos manuais. Não sei muito bem quais as diferenças em relação ao meu tempo, mas parece que trocaram as novelas camilianas por outras mais modernas e a a Ilustre Casa de Ramires deu lugar a outras casas, igualmente famosas. Não deve ser grave.

Já tentei explicar aos accionistas que os nossos leitores têm elevado poder de compra, são da classe AB, cultos e gostam de humor fino, mas parece que é exactamente esse o problema. Eles só vendem produtos brancos roubados, que distribuem na Feira do Relógio. Em desespero de causa, tentei comprar-lhes acções, mas acabei com vários Rolex nos braços e sem dinheiro.

Assim, é natural que comecem a aparecer alguns posts rascas, mas vou tentar mantê-los dentro de limites aceitáveis. Por favor reconheçam este esforço e visitem o blog mais vezes. De contrário, um dia serei despedido, e vem para cá um Jovem (isto é uma ameaça velada).

Façam isso por mim, vá lá...


domingo, outubro 12, 2003

Estatística

Duas notícias no mesmo Expresso (11/10/2003):

"Salários portugueses longe da UE: Os trabalhadores portugueses continuam a ser mais mal pagos que no resto da Europa"

Telemóveis: "O custo da ligação fixo-móvel vai aproximar-se da média europeia"

Portanto, em média, as notícias não são más, nem são novas. Mas aconselho que, por padrão, se faça um desvio por Espanha. Os salários do nosso vizinho aproximam-se da média europeia e os preços continuam baixos.



Do ponto de vista estatístico, podemos representar os preços e os salários em Portugal com uma curva de qui-quadrado, separados por uma linha vertical imaginária a meio da curva. A zona azul corresponde aos salários portugueses, enquanto a zona mais alta da curva reflecte as áreas em que já se praticam preços europeus.

Idealmente (digo eu), a curva seria simétrica, o que se consegue aumentando os "graus de liberdade". Para quem não percebe de estatística: a plena liberdade tem que ser temperada, nem muito fresca, nem muito quente. A curva mostra que a nossa liberdade está muito fresca (4 ou 5 graus), quando deveria estar, no mínimo, em uns 12 a 15 graus. Para ter mais graus de liberdade, basta aumentar a responsabilidade individual e perante a comunidade e a competência em todos os níveis das estruturas hierárquicas. Convém também relembrar alguns valores básicos.

Para os puristas: a interpretação destes conceitos estatísticos poderá ter sido excessivamente liberal, quiçá errada. Mas talvez possamos dizer o mesmo da realidade a que se aplica.

sábado, outubro 11, 2003

Um grão de areia

As citações abaixo referem-se ao mesmo acontecimento, relatado pelos dois principais jornais da Madeira, no mesmo dia (31 de Agosto). Repito: trata-se do mesmo acontecimento, e cito as notícias na íntegra. E não digo mais nada, porque me apetece dizer muito. É destes pequenos doces que os cínicos se alimentam.


Jornal da Madeira

"Livro de João Baptista do Centro de Congressos do Porto Santo: Areia retratada em livro

O Centro de Congresssos Porto Santo foi, ontem, palco do lançamento do livro de João Baptista Pereira Silva, intitulado "Areia da Praia de Porto Santo: geologia, génese, dinâmica e propriedades justificativas do seu interesse medicinal"
Uma obra que resulta de uma análise intensiva da singular areia da ilha, bem como da água, salgada ou de nascente, e de diversos outros recursos naturais de Porto Santo.
Na cerimónia de lançamento, o autor, natural da Madeira, não deixou passar a oportunidade de agradecer a todas as entidades que o apoiaram nos diversos passos de investigação e de escrita, de entre os quais se destacam o presidente do Governo Regional, os anterior a actual directores regionais dos Assuntos Culturais, a Câmara do Porto Santo e o professor Celso Gomes, da Universidade de Aveiro, orientador das investigações efectuadas, revisor do texto e autor do prólogo.
Igualmente presente no evento, o presidente da Câmara Municipal do Porto Santo, Roberto Silva, não deixou de tecer fortes elogios à obra e ao próprio escritor, salientando que, "como destino turístico que o Porto Santo é, tudo o que sejam trabalhos sobre a ilha são sempre importantes". Para além disso, fez referência ao facto de o autor ser já acarinhado pelos porto-santenses, tendo em conta que já fez diversos trabalhos sobre a ilha.
Por seu turno, Celso Gomes, a quem ficou a cargo a apresentação do livro, não deixou de dirigir palavras de apreço àquele que já foi seu discípulo, pela qualidade do trabalho realizado. Segundo as suas palavras, "escrever um livro é sempre um risco que se corre, mas esta obra exprime sem medo o pensamento do autor". Recorde-se que foi no final da sua licenciatura, em 1996, que João Baptista começou o estudo das areias de Porto Santo, matéria que acabou por ser o tema da sua tese de doutoramento.
De salientar ainda que, para além do resultado das investigações efectuadas, a obra comporta 600 fotografias registadas até Janeiro deste ano e custou, na totalidade, 55 mil euros."




Diário de notícias

"Patrocinadores faltaram à apresentação do livro de Baptista

Jardim não gostou dos resultados da investigação, como tal, a Secretaria do Turismo e a Sociedade de Desenvolvimento meteram... férias.
A apresentação do Livro de João Baptista "Areia da Praia da Ilha do Porto Santo", que decorreu ontem, ficou marcada pelas ausências, pois não é todos os dias que os principais patrocinadores da publicação de uma obra não comparecem, nem se fazem representar, no acto formal de apresentação da mesma.
Foram enviados cerca de "mil convites" e, embora o auditório do Centro de Congressos do Porto Santo estivesse composto, as cadeiras nas onde se sentariam representantes da Presidência do Governo Regional, da Secretaria Regional do Turismo e Cultura ou da Sociedade de Desenvolvimento estavam vazias.
Entre os patrocinadores institucionais só o presidente da Câmara Municipal do Porto Santo compareceu. No discurso que efectuou, destacou-se uma frase: «Temos de ter consciência de que, possivelmente, devemos melhorar em alguns aspectos, por isso, não há que ter medo dos estudos, pois eles são um complemento para quem tem de decidir».
Também a Universidade da Madeira (UMa) ignorou a cerimónia de ontem, facto criticado por Celso Gomes, professor catedrático da Universidade de Aveiro, e orientador científico da investigação feita por João Baptista.
As ausências podem ter ficado a dever-se ao facto de as conclusões retiradas do estudo não serem «agradáveis à vista», ou seja, a investigação levou o autor a concluir entre outras coisas, que no período compreendido entre 1947 e 1995 registaram-se recuos da linha de costa na ordem dos 40 metros, no sector oriental da praia, e de 90 metros, no sector ocidental. A tendência deverá continuar.
João Baptista preferiu desvalorizar as faltas, dizendo que elas se ficaram a dever ao facto de se estar num período de férias. «São opções que nós temos de respeitar», disse o investigador, revelando que, quando as entidades aceitaram patrocinar o estudo, tinham como objectivo estudar devidamente o problema, o que veio a ser feito. Os resultados, diz, interessam não só aos porto-santenses, mas também aos investidores actuais e futuros.
Dadas as conclusões, o trabalho de investigação agora publicado também apresenta caminhos a seguir. Para proteger as dunas, há que disciplinar os acessos à praia, construindo um maior número de passadeiras de madeira e diminuindo os acessos indiscriminados, há que evitar toda e qualquer construção, é urgente reflorestar o cordão dunar. Deve estudar-se a geometria do molhe e contramolhe do Porto de Abrigo, que deve ser dragado, e reforçar com areia os núcleos de erosão junto à praia da Calheta e ao Hotel Lua Mar. Em resumo, é urgente criar sinergias entre os sectores público e privado, e há que investir."

quinta-feira, outubro 09, 2003

Esbarrar

O linguarejar do Porto fascina-me e surpreende-me cada vez que cá venho.

Hoje estava à espera de uma colega e perguntei a uma funcionária se ela demoraria. "Não, a menina está aí a esbarrar." Ora os portuenses vão desculpar a minha ignorância e, talvez, a minha efectação de maneiras, mas "esbarrar" não me parece uma forma própria de alguém chegar, em especial tratando-se de uma senhora.

Isto fez-me lembrar de um acidente que houve no século passado no Cais do Sodré. Alguns lembrar-se-ão que um comboio perdeu as estribeiras e entrou pela estação adentro. À tarde, o jornal A Capital titulava, por cima da fotografia do comboio: "Novo horário, novo estilo". Mas este título referia-se (percebia-se depois) à nova grelha de programação da RTP. Não sei se foi incompetência ou humor fino, mas foi brilhante.

Classificados

AO DIVINO ESPÍRITO SANTO

Agradeço ao Divino Espírito Santo a graça recebida.

Peço desculpa por só agora me lembrar de agradecer.

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VENDE-SE

CADEIRA DE RODAS NOVA


Motivo milagre

"Impecável"

Resposta a este jornal ao nº 123456

Voltar

Num tempo acelerado como o nosso, é bom saber que há coisas para onde é bom voltar, que têm um calor familiar e uma espécie de eternidade que nos conforta como o colo da mãe.

Os mesmos aceleras. Os mesmos camiões fazendo as mesmas asneiras. As mesmas obras. As mesmas portagens exorbitantes. Que saudades que eu já tinha da autoestrada do Norte!

terça-feira, outubro 07, 2003

Diálogo de Culturas

O título é d' A Aba de Heisenberg, que pega num porco inglês, num bacalhau francês e num peixe espanhol para concluir que o português "é uma língua bastante crua e pobre". Não posso estar mais de acordo, excepto num pormenor: porquê citar esses amadores? Falemos dos profissionais do léxico, aqueles que realmente sabem todas as nuances das palavras, todos os milimétricos cambiantes de sentido. E vamos aprender com eles, caramba! Assim, com estes exemplos, carago:

- Vamos buscar as cem palavras que os esquimós usam para "neve";
- As centenas com que os árabes designam a areia;
- Os milhares de termos dos americanos para "dinheiro";
- As variações múltiplas dos italianos para "negócios de família";
- A riqueza lexical dos belgas para "cerveja";
- E dos irlandeses para "bebedeira";
- As inúmeras formas que os alemães têm para designar "palavras compridas" (esta deve fazer curto circuito);

... e juntemos-lhe a "Saudade", tããããooo portuguesa (ai... suspiro!).

Como estímulo, deixo aqui as variações sobre a neve, que fui buscar aqui (esta lista, si non è vera, e ben trovata):

tlapa: powder snow
tlacringit: snow that is crusted on the surface
kayi: drifting snow
tlapat: still snow
klin: remembered snow
naklin: forgotten snow
tlamo: snow that falls in large wet flakes
tlatim: snow that falls in small flakes
tlaslo: snow that falls slowly
tlapinti: snow that falls quickly
kripya: snow that has melted and refrozen
tliyel: snow that has been marked by wolves
tliyelin: snow that has been marked by Eskimos
blotla: blowing snow
pactla: snow that has been packed down
hiryla: snow in beards
wa-ter: melted snow
tlayinq: snow mixed with mud
quinaya: snow mixed with Husky shit
quinyaya: snow mixed with the shit of a lead dog
slimtla: snow that is crusted on top but soft underneath
kriplyana: snow that looks blue in the early morning
puntla: a mouthful of snow because you fibbed
allatla: baked snow
fritla: fried snow
gristla: deep fried snow
MacTla: snow burgers
jatla: snow between your fingers or toes, or in groin-folds
dinliltla: little balls of snow that cling to Husky fur
sulitlana: green snow
mentlana: pink snow
tidtla: snow used for cleaning
ertla: snow used by Eskimo teenagers for exquisite erotic rituals
kriyantli: snow bricks
hahatla: small packages of snow given as gag gifts
semtla: partially melted snow
ontla: snow on objects
intla: snow that has drifted indoors
shlim: slush
warintla: snow used to make Eskimo daiquiris
mextla: snow used to make Eskimo Margaritas
penstla: the idea of snow
mortla: snow mounded on dead bodies
ylaipi: tomorrow's snow
nylaipin: the snows of yesteryear ("neiges d'antan")
pritla: our children's snow
nootlin: snow that doesn't stick
rotlana: quickly accumulating snow
skriniya: snow that never reaches the ground
bluwid: snow that's shaken down from objects in the wind
tlanid: snow that's shaken down and then mixes with sky-falling snow
ever-tla: a spirit made from mashed fermented snow, popular among Eskimo men
talini: snow angels
priyakli: snow that looks like it's falling upward
chiup: snow that makes halos
blontla: snow that's shaken off in the mudroom
tlalman: snow sold to German tourists
tlalam: snow sold to American tourists
tlanip: snow sold to Japanese tourists
protla: snow packed around caribou meat
attla: snow that as it falls seems to create nice pictures in the air
sotla: snow sparkling with sunlight
tlun: snow sparkling with moonlight
astrila: snow sparkling with starlight
clim: snow sparkling with flashlight or headlight
tlapi: summer snow
krikaya: snow mixed with breath
ashtla: expected snow that's wagered on (depth, size of flakes)
huantla: special snow rolled into "snow reefers" and smoked by wild Eskimo youth
tla-na-na: snow mixed with the sound of old rock and roll from a portable radio
depptla: a small snowball, preserved in Lucite, that had been handled by Johnny Depp
trinkyi: first snow of the year
tronkyin: last snow of the year
shiya: snow at dawn
katiyana: night snow
tlinro: snow vapor
nyik: snow with flakes of widely varying size
ragnitla: two snowfalls at once, creating moire patterns
akitla: snow falling on water
privtla: snow melting in the spring rain
chahatlin: snow that makes a sizzling sound as it falls on water
hootlin: snow that makes a hissing sound as the individual flakes brush
geltla: snow dollars
briktla: good building snow
striktla: snow that's no good for building
erolinyat: snow drifts containing the imprint of crazy lovers
chachat: swirling snow that drives you nuts
krotla: snow that blinds you
tlarin: snow that can be sculpted into the delicate corsages Eskimo girls pin to their whale parkas at prom time
motla: snow in the mouth
sotla: snow in the south
maxtla: snow that hides the whole village
tlayopi: snow drifts you fall into and die
truyi: avalanche of snow
tlapripta: snow that burns your scalp and eyelids
carpitla: snow glazed with ice
tla: ordinary snow

PS Obrigado a todos os que, depois de lerem a minha lista de iogurtes, me ofereceram caridosamente emprego, preocupados com o meu excesso de tempo livre. Escusam de repetir neste post a generosa oferta. Obrigado.

segunda-feira, outubro 06, 2003

La France qui Tombe

É o título de um livro de Nicolas Baverez e que os (filo-)americanos estão a adorar. No Chicago Boyz podem ler-se comentários como (Baverez não é mais doce):

"You are either with France, or you shut up. Of course, when Bush says so, it's stupid and "simplistic". But coming from the Elysee Palace, it is so very subtle and sophisticated."

"When you're a midget and looking important with the rest of the crowd matters most, standing up to the biggest guy is one obvious, if dangerous, choice. The susbstance of your opposition does not matter. Being seen to oppose is the main objective. "

"Pretense is indeed all we have left. And I would add that 99.9% of it hangs on that permanent seat at the U.N. Security Council. Without it, France would be largely ineffectual and irrelevant outside its immediate European backyard. As, in fairness, it should be."

Independentemente da relação com os Estados Unidos, é interessante ver isto na perspectiva da política interna europeia, em particular o alargamento e a constituição.

Uma ideia genial

O projecto do governo de vender dívidas fiscais ao sector privado é uma das mais geniais ideias dos últimos tempos e, se avançar, vai ter como consequência um boom económico sem precedentes. Vejamos.

Os privados vão, naturalmente, cobrar as dívidas. E qual é a forma mais eficaz de cobrar dívidas? Com o cobrador do fraque! Ora, tendo em conta a quantidade de portugueses que fogem ao fisco e/ou tem dívidas fiscais, vão ser necessários batalhões de cobradores de fraque. Rapidamente teremos mais cobradores que professores, por exemplo. E todos impecavelmente vestidos. E todos fazendo os seus happenings junto dos prevaricadores dezenas de vezes, todos os dias.

Para além do emprego gerado, gostaria que reparassem nisto do ponto de vista do turismo. Onde, em qualquer outro ponto do mundo, um turista poderá apreciar metade de um país a fugir da outra metade, vestida de fraque? Proponho que se avance rapidamente e sem concurso público com o aeroporto da Ota, para que tenhamos capacidade que gerir a avalanche de turistas que nos irão bater à porta. Além disso, teremos também receitas excepcionais resultantes dos direitos televisivos vendidos para todo o mundo.

Se o Governo se despachar, teremos um Europeu 2004 absolutamente hilariante, com cobradores de fraque correndo pelo campo atrás de algum jogador menos respeitador dos seus compromissos. Isto sem falar do que se passará nas bancadas.

Convém ainda criar sinergias com outras áreas, para exponenciar o efeito da medida. Uma delas é a selecção dos novos ocupantes de cargos públicos. É imprescindível que Governo e Oposição se ponham de acordo no apoio a Santana Lopes para Presidente da República e de Alberto João Jardim para comissário europeu. Quanto ao PS, vive o espírito do projecto avant la lettre.

A iniciativa privada não directamente ligada ao novo nicho de mercado deverá também participar deste esforço nacional. Muitos já deram provas de imenso talento. Lembro, por exemplo, a estranha doença que, há uns anos atrás, atacou as árvores em linha recta, por sinal onde uma urbanização pretendia fazer uma estrada. Exemplos como este devem ser devidamente publicitados através de livros, websites, DVDs...

Penso, sinceramente, que temos aqui uma nova oportunidade. Não aproveitámos o ouro do Brasil nem os fundos comunitários. Será que estaremos à altura de aproveitar esta?

domingo, outubro 05, 2003

Valores de Mercado 006/03: Morrer a dormir

Morrer a dormir é como a sair a meio do filme: nunca saberemos como acabou e ninguém nos vai contar.

Adormecer ao volante é das coisas mais estúpidas que alguém pode fazer (e devia ser severamente punido por isso), a não ser que sofra de narcolepsia, e neste caso, a parte estúpida é mesmo estar ao volante.

Pensando nos estúpidos que adormecem ao volante, está disponível no mercado um objecto que, quando colocado atrás da orelha, faz accionar um alarme assim que a cabeça atinge um certo grau de inclinação.

Trata-se, como se vê, de uma invenção utilíssima. Não que evite o acidente, mas dá-nos a oportunidade de, no último momento, decidir como queremos enfrentar a morte: passar suavemente dos braços de Morfeu para os braços da Grande Ceifeira, ou de olhos bem arregalados, assustados com a merda do alarme. Neste caso, vemos o filme até ao fim.

Disponível no mercado ao fantástico preço de 7.90 euros.

sábado, outubro 04, 2003

Portas fechadas

O opiniondesmaker cita a minha frase "Teriamos que falar de coisas verdadeiramente importantes e nós não sabemos, não é?" para concluir que "É que - às vezes - já nem sei o que é realmente importante.
Por isso, o que importa acaba por ser tudo o que estava escondido, e que aparece quando se abre uma porta." Falta esclarecer quem abre a porta, quando abre a porta e por que motivo abre a porta. E que porta.

Portugal está cheio de portas fechadas.

Há portas difíceis de abrir, com muitas trancas e muita gente que se "esqueceu" da chave. Portas cheias de esqueletos como a pedofilia, as relações perigosas que destruiram a paisagem, a corrupção, a fuga aos impostos, as pontes que caem.

Há portas que deveriam estar sempre abertas, para não servirem de abrigo aos ratos. São as portas favoritas dos media, fáceis de abrir e efeito garantido nas audiências. Somos gatos atrás dos ratos (favores de ministros...) que nos atiram em timings calculados para que nos esqueçamos dos esqueletos.

Há portas abertas para bibliotecas, que fazemos questão de fechar, porque não vemos nada de sumarento lá dentro.

Há portas para materiais de limpeza e conservação, que não abrimos porque não temos pachorra para cuidar de nada e menos orgulho no pouco que nos resta.

E há a porta favorita de todos: a porta que não é suposto que se abra, porque a piada está em espreitar pela fechadura. (O logotipo do IOL é exactamente isso: uma fechadura para espreitar. Como é possível alguém não se sentir desconfortável quando recebe uma factura com tal logotipo?)

Portanto, caro opiniondesmaker, de que portas falamos, quando falamos de portas?

(E temos Portas, mas isso são contas de outro rosário)

Once upon a time, in a galaxy far, far away...

Não saber escrever é uma das grandes frustrações da minha vida.

Alimento secretamente o desejo adolescente de escrever uma saga de ficção científica passada num futuro muito distante. Mas tenho um problema, que passo a explicar: não há história de ficção científica que não se alimente da realidade conhecida do leitor: jogos de poder, afectos, projecções de tecnologias já existentes ou imaginadas. Mas quem acredita que no futuro será o herói a apontar e a disparar a pistola de raio laser? Tudo será feito por pelos computadores!

Gostaria de escrever uma coisa que fosse mais verosímil (do ponto de vista do futuro), mas com tudo à nossa volta a desmaterializar-se e a transformar-se em energia, em que o próprio corpo ameaçar virtualizar-se, em que, no limite, a consciência, a experiência, as memórias de cada um, se fundem numa consciências universal, pura energia rodeando o planeta, não sei muito bem como definir o meu herói nem que trama seguiria para história. Qual a diferença entre um bit novo e um bit velho? Posso dizer que AC são os bons e DC são os maus? Sei que poderia acabar num imenso apagão, como está na moda, mas isso é muito óbvio.

"Lembro-me da infeliz família Byte, do clã KByte, que viviam em MegaByte..."

sexta-feira, outubro 03, 2003

A hipocrisia da rainha de copas


Ao que eu chamava num post anterior a ausência de relações institucionais entre pessoas, fala o relatório Mckinsey em informalidade. É a mesma coisa.

Temos exemplos disto todos os dias e, como dizia no post, há sempre a possibilidade de algum tolo ser apanhado. O comandante dos bombeiros de Lamego e os seus passeios de helicóptero e o favorecimento (alegado, neste momento) da filha do ministro para entrada na Universidade estão definitivamente na categoria dos tolos.

Não me parece interessante comentar estes casos, porque são ridículos, são recorrentes e fazem parte muitas vezes da agenda escondida de grupos de pressão, e servem apenas para epater le bourgois, numa nova aplicação revista e ampliada.

Hoje Portugal estará repleto de rainhas de copas aos gritos ao ministro "Off with his head! Off with his head!". Os comentadores porque são pagos para isso, os media porque é a lógica das audiências e a oposição porque não sabe fazer melhor. Toda a gente faz uma espécie de ola à volta dos culpados, estúpidos, e os media chupam a notícia até ao tutano.

Um caso de (alegado) nepotismo é grave e deveria ser tratado com procedimentos adequados, que não existem, nem para este, nem para os outros casos, porque se existissem deixariam a categoria de pão-e-circo. E nós não queremos isso, pois não? Teriamos que falar de coisas verdadeiramente importantes e nós não sabemos, não é?

Estas coisas cansam, de tão repetidas.

quinta-feira, outubro 02, 2003

Um doce?


Wayne Thiebaud, Cakes.

Valores de Mercado 005/03: Amor e consumo

"Diz-me quanto me compras, dir-te-ei quanto me amas"

O Amor é uma chatice (a pain in the ass) para qualquer regime político ou económico. Numa economia de mercado é particularmente irritante, porque as pessoas passam de consumidoras (o papel certo) para (brrr!) amantes.

Os amantes só consomem quartos de hotel, jantares à luz das velas e transportes. Ou seja, os amantes não consomem tralha. E não se passeiam nos centros comerciais (quer dizer, enfim, há gente capaz de tudo). Limitam-se à cama e ao pôr-do-sol. Não é por acaso que os grandes cantores do Amor são os poetas, que estão apenas um degrau acima dos homeless e arrumadores de carros (julgo saber que as empresas de estudos de mercado não entrevistam nenhum destes grupos sócio-profissionais). Alguém que ama verdadeiramente não encontra nada nas montras que expresse com dignidade o seu amor. Tudo parece barato e rasca, feito industrialmente para o amor dos outros.

Tinhamos (a sociedade), portanto, um problema: como passar da estimulação mútua improdutiva para a estimulação da economia. Como solução, foram tomadas as seguintes medidas:

A) No Natal chutou-se o incómodo aniversariante Menino Jesus ("quem é esse?", perguntam as gerações mais novas) para detrás da vaca, substituindo-o pelo extravagante funcionário de entregas ao domicílio.

B) Instituiu-se o dia de São Valentim, para criar uma pressão social que obrigue os amantes a saltar da cama e irem comprar a primeira coisa que lhes aparece;

C) Desvalorizou-se o Amor, em favor do Sexo e do Prazer (físico). Enquanto o Amor ocupa as 24 horas do dia, todos os dias, o Sexo, em princípio, tem uma duração um pouco mais limitada, e entre os momentos de Sexo, os consumidores já podem ir passear para o centro comercial;

D) "Quem o feio ama, bonito lhe parece": frases como esta são contrárias ao espírito do mercado. Você não é tão feio se escolher os produtos certos. Ao estimular o Sexo (no pun intended, honni soit qui mal y pense), abriu-se o vasto mercado do corpo e da beleza feminina e masculina;

E) Como o Amor se transmutou em amor, passou a poder ser idolatrado, isto é, passou a ser justificada a sua expressão por meio de objectos de lata e, por extensão, de qualquer tralha imaginável;

F) As frases que se diziam na cama e ao ver o pôr-do-sol, ou seja, na intimidade, foram publicitadas em postais cor-de-rosa e, por essa via, ridicularizadas e banalizadas (ridicularizadas e banalizadas mesmo!, não me venham com citações do Fernando Pessoa); como o Amor era eterno mas a imaginação limitada, o comum dos mortais viu-se na contingência de deixar de falar de amor e limita-se a comprar qualquer coisa ("não sei o que lhe hei-de comprar") para aquela pessoa por quem se cruza por vezes, sabe vagamente o nome e lhe parece que vive lá em casa, por algum motivo que lhe escapa;

G) "O melhor do mundo são as crianças": esta sim, esta é uma frase com espírito de mercado. E convém calá-las com qualquer coisa, quando fazem aquelas cenas no supermercado;

H) Comprar é a melhor terapia para gente só, feia, gorda... toda a gente tem algum problema que se resolve com compras; há ainda um reduto de pessoas felizes que resistem ainda e sempre ao invasor, mas estamos a tratar de as deprimir;

I) Convenceram-se as franjas do sistema que deviam expressar radicalmente as suas diferenças, não tomando banho, em alguns casos, não depilando os sovacos, noutros, usando roupas demasiado estranhas, ainda em outros. Isto torna-as exóticas mas inofensivas, e sem perigo de contágio.

Eu sei que o mundo é muito mais complexo, mas este post só pretende comemorar o início da época natalícia.

E eu sem dinheiro...

PS: Claro que se eu tivesse dinheiro, poderia comprar um casaco Max Mara, como muitos gostariam.

quarta-feira, outubro 01, 2003

O Commuter errante


Fig1: O Judeu Errante a caminho de Estrasburgo.

Este post é inspirado, com a devida vénia, no post "Judeu Errante" do Abrupto, que deverá ser lido previamente. Mas por favor voltem, está bem, please?

Por razões evidentes, interessam-me as maldições da errância suburbana, quando alguém é condenado a andar permanentemente à procura de um lugar para o carro onde ele não existe, e por isso nunca pode parar e acaba por chegar atrasado ao emprego. Eis uma verdadeira maldição, a não ser que vá de transportes públicos, e aí percebe que afinal a maldição era de pechisbeque e há coisas piores na vida.

O commuter errante é uma versão moderna do judeu errante, do holandês voador e outros que perderam o norte ou nunca o quiseram encontrar. O caminho faz-se caminhando, o fim é o caminho.

(A coisa assim fica um bocado zen.)

Há versões díspares, mas parece que o judeu errante original era sapateiro (o que leva o Amável Leitor a perguntar-me, com um leve sorriso trocista, que faço eu aqui com um rabecão). Outras versões afirmam que o judeu errante era na verdade um romano, o que torna a história mais complexa. Vamos simplificar, porque as lendas são simples, por definição.

O judeu errante, como o próprio nome indica, errou, e errará pela eternidade, enquanto não pagar ter zombado de Jesus. O erro do judeu propagou-se no espaço e no tempo, tendo o sujeito sido garantidamente visto em vários lugares e várias épocas até ao presente. A errância não é necessariamente confinada aos meios terrestres. Hoje dispomos de modernos meios de transporte seguros e confortáveis, como os aviões, dignos de qualquer judeu, errante ou não, embora esta variedade talvez prefira a classe turística.

Há um tipo especial de commuters que usa o avião em lugar do automóvel, o que reduz o problema do estacionamento. Os eurodeputados pertencem a esta categoria, embora neste caso o errante talvez se aplique mais à bagagem, que poderá facilmente ir parar à Anatólia.

Será que, nos dias de hoje, o judeu errante é um commuter, de terminal em terminal, sem destino? Esta dúvida está subjacente no post de Pacheco Pereira. Mas há ainda uma outra dúvida inquietante: qual será a relação entre o judeu errante e D. Quixote? Não será a errância de D. Quixote pela Mancha profundamente judaica? E o que sabe Pacheco Pereira sobre o assunto quando nos fala do seu fascínio pelos dois? Que tem Pacheco Pereira a esconder?

Eu poderia jurar que já os vi, aos três, trocando cartões de visita em pleno terminal de embarque da Portela. Designam-se a si próprios por "The Wanderers" e têm apertos de mão codificados. Mas, sendo eu cretense (-ino?), mentiroso compulsivo, como poderia o Amável Leitor acreditar em mim?

Dúvidas e mais dúvidas: É ou não é verdade que o judeu errante apareceu em 1505 na Boémia, indicando a um tecelão de nome Kokot, o lugar exacto onde o seu avô enterrou um tesouro? Que tesouro procura Pacheco Pereira? Será que o judeu errante sabe algo sobre Paulo Portas? Ou será Paulo Portas um simples moinho de vento? E não será Ahasverus o verdadeiro nome de Pacheco Pereira e Cartaphilus o de Paulo Portas, usando ambos a linguagem dos P's para armar confusão? E será que podemos evocar os seus nomes em vão? Todos os Nomes?

Para terminar, e a pedido de vários leitores, um pequeno poema de Vinicius ("Judeu Errante"), dedicado a todos nós, os commuters errantes e solitários-e-estúpidos-que-podiamos-combinar-com-colegas-porque-era-bom-para-o-ambiente-e-saía-mais-barato, sem lugar para estacionar o carro:

"Hei de seguir eternamente a estrada
Que há tanto tempo venho já seguindo
Sem me importar com a noite que vem vindo
Como uma pavorosa alma penada

Sem fé na redenção, sem crença em nada
Fugitivo que a dor vem perseguindo
Busco eu também a paz onde, sorrindo
Será também minha alma uma alvorada

Onde é ela? Talvez nem mesmo exista...
Ninguém sabe onde fica... Certo, dista
Muitas e muitas léguas de caminho...
Não importa. O que importa é ir em fora
Pela ilusão de procurar a aurora
Sofrendo a dor de caminhar sozinho"