domingo, fevereiro 29, 2004

O imprevisível óbvio

Passeio marítimo. O pai ensina o filho a andar de patins em linha. O filho, medroso, agarra-se ao contentor do lixo. "Eu vou cair!", balbucia. "Pois vais. Todos caimos.", responde-lhe o pai.

Surpreendeu-me o óbvio. "Não vais nada cair" seria a mentira piedosa do costume. Confirmar os receios da criança mas diluí-los na normalidade pareceu-me uma regra de pedagogia prática das mais sensatas que tenho ouvido ultimamente.

Não, não fiquei para ver o resultado.

A minha primeira vez

Pela primeira vez, ontem fui à bola. Eu sei, eu sei. É uma falha gravíssima na minha experiência de vida que, pudicamente, deveria esconder. Mas hoje levantei-me com espírito de confessionário, e não há intimidade que eu não queira expor.

Voltando à bola. Aparentemente, é suposto dedicar à espera da hora do jogo o mesmo tempo que o jogo propriamente dito demora. Ou seja, duas horas para um jogo normal, ou três horas, com expectativa de prolongamento, ou seis horas, se se deixou a prole em casa. Portanto, chegámos ao estádio duas horas antes, entrámos no parque de estacionamento e descobrimos que não tinhamos os bilhetes. Ok. Sessenta quilómetros para ir buscar os bilhetes a casa. Quando regressamos faltam quarenta e cinco minutos. Nem tentamos estacionar perto do estádio. E, na realidade, ir de metro parece-me muito mais futebolístico.

A porta de entrada é no ponto oposto do sítio onde estamos. Dar a volta à praça sem encontrar uma caraça. Reparo que toda a gente é apalpada à entrada. Pensei que fosse uma coisa para levantar o moral (ego booster) dos apoiantes da equipa da casa, mas verifico que apalpadores e apalpados são sempre do mesmo sexo, o que é um pouco desmoralizador.

O estádio parece muito maior na televisão, e noto com surpresa no programa distribuído que o relvado do estádio da equipa adversária tem as mesmas medidas. Ora se este estádio é de um dos "três grandes" (?) não seria lógico que o relvado fosse muito maior? Não percebo. Deve ser o tal nivelamento por baixo de que se fala.

A instalação sonora (excelente) tenta animar o ambiente, não sei se com total sucesso. Os mais realistas, prevendo a merda de jogo que se avizinha, distribuem prodigamente rolos de papel higiénico.

Sinto-me mergulhado num caldeirão publicitário. Os anúncios sonoros dão um colorido de Blade Runner ao ambiente. Escrevo um post-it mental para decidir mais tarde se isso é desagradável, ou não.

Distraio-me a ler as tristes mensagens de SMS a um euro no ecrã gigante e nem reparo que o jogo já começou. Há espectadores de cinema que, sabendo que vão ver uma comédia, soltam uma gargalhada em qualquer momento que pretenda ter graça. É o mal da divulgação científica. O povo adora Pavlov. Mas divago. O que quero dizer é que esta gente solta uns aaas e uns iiis que me parecem totalmente absurdos, sobretudo quando a bola passa a trinta metros da baliza.

Os espectadores estão a simpatizar com o árbitro. Pensam que está a fazer um bom trabalho. Para além de "palhaço" e "filho da puta" não lhe chamam mais nada, e mesmo estes são ditos de forma quase carinhosa, e apenas porque são obrigados a chamar-lhe alguma coisa (futebol oblige).

Sobre o jogo: em síntese, pareceu-me francamente pior que na PlayStation. É muito pequeno, percebem? Não vejo grande diferença em relação aos jogos de domingo na praia de Carcavelos. E reparei que num pormenor curioso: a equipa da casa jogou com um anónimo, um tal de 31 cujo nome não vinha no programa. Pergunto: é lícito fazer isto? A equipa adversária chega, pede o programa para ver quem são os actores e depois enganam-nos assim, torpemente? Eu acho que não se faz.

O meu vizinho vive intensamente o jogo. Quando não está a rebentar-me os tímpanos com aquele assobio alarve, vai incentivando os jogadores, indicando-lhes como devem jogar. Por exemplo: "Dá-lhe porrada! Dá-lhe porrada! Isso!..." Quando a aquipa adversária paga na mesma moeda, quem sofre é o "palhaço" do árbitro, que não viu aquele crime.

No ténis, os espectadores seguem a bola com um movimento contínuo do pescoço. O povo do futebol importou o modelo mas abastardou-o: em lugar do subtil movimento da esquerda para a direita, olha para a frente e para trás, o que é quase impossível de fazer graciosamente (atrás estão, como é óbvio, as repetições na Sport TV).

Ao intervalo, os apoiantes da equipa da casa estão desolados, e por mais que a instalação sonora os motive, só se ouve "não sei porque não fiquei em casa".

Na segunda parte a coisa vai de mal a pior, mas finalmente os anfitriões lá marcam um golito, e o pessoal fica um pouco mais animadito.

O jogo acaba pouco depois. Saimos, apanhamos o metro, e penso: já sei porque fico em casa. Se voltar ao estádio, peço roupa emprestada à namorada. É que as mulheres (parece que não há senhoras na bola, só mulheres) pagam oito vezes menos, e têm bebidas de graça no bar.

sábado, fevereiro 21, 2004

El Baile

Tenho informações confidenciais que provam que o nuestro estado de espírito depressivo dos últimos tiempos es uma bem urdida cabala dos serviços secretos espanhóis com vista à nossa completa desmoralizacion e a entrega do nosso destino ao gobierno de Madrid.

Este esquema diabólico terá o seu auge na eleição para a Presidência da República de Pedro Santana Lopes, el Pedrito de Portugal. Uma opciòn de puro escárnio será a posterior eleição de Alberto João Jardim para Primeiro Ministro, pero alguns estrategas castelhanos avisam que la insistência neste ponto poderá provocar danos irreversíveis en el estado psicológico dos portugueses, incapazes de hacer mais alguma coisa que trautear o bailinho da Madeira, con consequências funestas nas ventas do Corte Inglès.

A teoria da cabala es mui sedutora, e reconfortante, apesar de tudo. Só de pensar que não há cabala nenhuma, e que nosotros somos mismo assim, fico prostrado, sem ânimo, desinteressado, de olhar vazio...

Deixa passar... esta linda... brincadeira...
Soy contrabandista, ó Elvas, ó Elvas...

sexta-feira, fevereiro 13, 2004

"Marquises"

No meu concelho está a decorrer um processo de legalização de "marquises" (aparentemente, desde há dois anos). Comprei uma casa em Outubro, e teria de tratar do assunto o quanto antes, para evitar as filas dos últimos dias. Hoje levantei-me preocupado com a questão, porque é necessário pedir alguns documentos e a coisa é demorada.

Escusado será dizer que o prazo acabava exactamente hoje.

Telefonei para a Câmara tencionando arrolar uma série de circunstâncias abonatórias que fariam a funcionária chorar baba e ranho e admitir, comovida, que seria humanamente impossível resolver o assunto em escassos cinco meses.

No need. O prazo foi alargado para Setembro.

São estas pequenas coisas que me reconciliam com Portugal.

(E também um passeio ao sol, à beira mar, em pleno Inverno, como vou passar a demonstrar agora.)

quarta-feira, fevereiro 11, 2004

O eterno retorno

O António, habitualmente tão crítico, cai na esparrela em que todos, invariavelmente, caimos: atirar para as calendas (gregas, naturalmente) a resolução dos erros do presente. Sempre foi assim, por que motivo seria diferente?

Se o homónimo Borges acha que "precisamos de uma nova geração de dirigentes", o António atira logo com "uma nova geração de dirigentes, não só na economia, como na política, sociedade, cultura e desporto".

Erro crasso. Achar que os problemas do país se resolvem com uma nova geração é o primeiro passo para desresponsabilizar a geração actual. É uma variante da culpa a morrer solteira. As novas gerações nunca são melhores, nem piores. São sempre iguais, mutatis mutandis. Têm igual quantidade de génios, o mesmo número de cobardes. Para quê fazê-los expiar uma culpa que não é deles?

Esperar pela próxima geração redentora é deixar prescrever os crimes desta, que se vai passeando impune. Não são camelos, e no Céu não há agulhas. Sempre foi assim.

Seria tão mais simples, se lhes dissessemos: "Vocês fizeram asneira, vocês vão pagar por isso, vocês vão ter de encontrar soluções. Vocês."

Mas nunca foi assim, por que motivo seria agora?

sábado, fevereiro 07, 2004

Angústia

Como é que responderiam a um aviso destes? (opções "Yes", "No", "Always")

Caution: "DIRECCAO GERAL INFORMATICA E APOIO SERVICOS TRIBUTARIOS" asserts that this content is safe. You should only accept this content if you trust "DIRECCAO GERAL INFORMATICA E APOIO SERVICOS TRIBUTARIOS" to make that assertion.

Confiar numa Direcção Geral? brrrrrr....

sexta-feira, fevereiro 06, 2004

Comentários

Eça incorrigível raça

"Ega esfregava as mãos. Sim, mas precioso! Porque essa simples fórma de botas explicava todo o Portugal contemporaneo. Via-se por alli como a coisa era. Tendo abandonado o seu feitio antigo, á D. João VI, que tão bem lhe ficava, este desgraçado Portugal decidira arranjar-se á moderna: mas sem originalidade, sem força, sem caracter para crear um feitio seu, um feitio proprio, manda vir modelos do estrangeiro - modelos d'idéas, de calças, de costumes, de leis, d'arte, de cozinha... Sómente, como lhe falta o sentimento da proporção, e ao mesmo tempo o domina a impaciencia de parecer muito moderno e muito civilisado - exagera o modelo, deforma-o, estraga-o até á caricatura. O figurino da bota que veio de fóra era levemente estreito na ponta; - immediatamente o janota estica-o e aguça-o até ao bico d'alfinete. Por seu lado o escriptor lê uma pagina de Goncourt ou de Verlaine em estylo precioso e cinzelado; - immediatamente retorce, emmaranha, desengonça a sua pobre phrase até descambar no delirante e no burlesco. Por sua vez o legislador ouve dizer que lá fóra se levanta o nivel da instrucção; - immediatamente põe no programma dos exames de primeiras letras a metaphysica, a astronomia, a philologia, a egyptologia, a chresmatica, a critica das religiões comparadas, e outros infinitos terrores. E tudo por ahi adiante assim, em todas as classes e profissões, desde o orador até ao photographo, desde o jurisconsulto até ao sportman... é o que sucede com os pretos já corrompidos de S. Thomé, que vêem os europeus de lunetas - e imaginam que n'isso consiste ser civilisado e ser branco. Que fazem então? Na sua sofreguidão de progresso e de brancura acavallam no nariz tres ou quatro lunetas, claras, defumadas, até de côr. E assim andam pela cidade, de tanga, de nariz no ar, aos tropeções, no desesperado e angustioso esforço de equilibrarem todos estes vidros - para serem immensamente civilisados e immensamente brancos..."

(ena! Esse tal Eça dava bué de erros ortugráficos!)

quinta-feira, fevereiro 05, 2004

Ultima ratio

"If you had behaved nicely, the Communists would not exist."
Jenny Holzer

O Bloguitica chama "chantagem" às greves anunciadas para a altura do Euro 2004 e acha tal atitude "deplorável".

O Bloguitica, no post imediatamente anterior, cita um artigo demolidor sobre o nível de desenvolvimento de Portugal que, em resumo, afirma que tudo está mal, excepto os salários dos directores de empresas públicas (e, por extensão da minha responsabilidade, das elites em geral).

O que o Bloguitica não percebeu é que há uma clara relação entre as duas mensagens.

Uma greve nestas circunstâncias é uma declaração de impotência de quem a promove. De quem sente que, num processo negocial ordinário, nunca será ouvido. Pura e simplesmente porque a outra parte se está nas tintas.

Fazer greve nestas circunstâncias é equivalente a chamar a TVI/SIC para mostrar o buraco que o presidente da câmara prometeu tapar há 20 anos.

Chamar chantagem a uma greve legal é declarar que a greve só pode ser feita nos tempos e nos modos que agradam à outra parte. Quando não chateia muito.

Dos meus chinelos burgueses, acho a marcação de greves para esse período extremamente desagradável ("Que horror! Que selvagens! Que é que os outros países vão pensar?"). Mas, em Portugal, carregamos na nossa cruz elites estúpidas que nunca percebem que podem estar a esticar demasiado a corda das desigualdades sociais.

Pensando bem, talvez nem precisem de perceber. Têm os seus peões da classe média que se encarregam de espalhar a justa palavra (por exemplo, "chantagem", "deplorável").

PS: Irrita-me que de vez em quando me façam vestir esta consciência social de esquerda. Por que motivo não se portam bem?

terça-feira, fevereiro 03, 2004

Velhos

Este mapa representa a percentagem de velhos (65+ anos) entre a população residente, de acordo com os Censos de 2001, por freguesia. Tons mais escuros indicam maior percentagem de velhos.

Não sei se vale a pena qualquer comentário, tendo em conta a total contradição entre a realidade e o discurso político.

Este é o Portugal Profundo em todo o seu esplendor (há outros pontos de vista). Uma imensa reserva de velhos, muito queridos, quase fofos, vistos de dentro do jipe no caminho para o monte ao fim-de-semana.

Um perder de vista de lugares sem trabalho, sem a esperança mínima de uma vidinha decente de onde apenas o idiota da aldeia não foge. Todos fogem, todos mentem, dizendo que voltam. Não voltam. Mentiras piedosas que tentam desculpar uma espécie de traição à terra. E os velhos ficam, contando os mortos, e esperando.

Este é também o Portugal Suburbano, onde "ser velho" é um conceito abstracto ou, na melhor das hipóteses, algo que só acontece aos outros, aqueles que ficam no cenário, quando cerramos a cortina do fim-de-semana.

No Portugal Suburbano não envelhecemos, porque toda a gente tem a nossa idade. Podemos perder tempo nas coisas mais estúpidas porque nunca seremos velhos e, apesar de não termos tempo para nada, nunca deixaremos de ter tempo para tudo. Talvez...

Trabalhamos, porque estamos todos na idade de trabalhar. E também a idade de procriar. Mas no Portugal Suburbano, essa é uma das exclusões de partida. Tens uma, ou tens outra. Se tens as duas, não te tens a ti.

Uma imagem sugere mil palavras de revolta.

PS: Desculpem o "velhos". Deveria dizer pessoas "de uma certa idade", em suburbanês.