quarta-feira, outubro 01, 2003

O Commuter errante


Fig1: O Judeu Errante a caminho de Estrasburgo.

Este post é inspirado, com a devida vénia, no post "Judeu Errante" do Abrupto, que deverá ser lido previamente. Mas por favor voltem, está bem, please?

Por razões evidentes, interessam-me as maldições da errância suburbana, quando alguém é condenado a andar permanentemente à procura de um lugar para o carro onde ele não existe, e por isso nunca pode parar e acaba por chegar atrasado ao emprego. Eis uma verdadeira maldição, a não ser que vá de transportes públicos, e aí percebe que afinal a maldição era de pechisbeque e há coisas piores na vida.

O commuter errante é uma versão moderna do judeu errante, do holandês voador e outros que perderam o norte ou nunca o quiseram encontrar. O caminho faz-se caminhando, o fim é o caminho.

(A coisa assim fica um bocado zen.)

Há versões díspares, mas parece que o judeu errante original era sapateiro (o que leva o Amável Leitor a perguntar-me, com um leve sorriso trocista, que faço eu aqui com um rabecão). Outras versões afirmam que o judeu errante era na verdade um romano, o que torna a história mais complexa. Vamos simplificar, porque as lendas são simples, por definição.

O judeu errante, como o próprio nome indica, errou, e errará pela eternidade, enquanto não pagar ter zombado de Jesus. O erro do judeu propagou-se no espaço e no tempo, tendo o sujeito sido garantidamente visto em vários lugares e várias épocas até ao presente. A errância não é necessariamente confinada aos meios terrestres. Hoje dispomos de modernos meios de transporte seguros e confortáveis, como os aviões, dignos de qualquer judeu, errante ou não, embora esta variedade talvez prefira a classe turística.

Há um tipo especial de commuters que usa o avião em lugar do automóvel, o que reduz o problema do estacionamento. Os eurodeputados pertencem a esta categoria, embora neste caso o errante talvez se aplique mais à bagagem, que poderá facilmente ir parar à Anatólia.

Será que, nos dias de hoje, o judeu errante é um commuter, de terminal em terminal, sem destino? Esta dúvida está subjacente no post de Pacheco Pereira. Mas há ainda uma outra dúvida inquietante: qual será a relação entre o judeu errante e D. Quixote? Não será a errância de D. Quixote pela Mancha profundamente judaica? E o que sabe Pacheco Pereira sobre o assunto quando nos fala do seu fascínio pelos dois? Que tem Pacheco Pereira a esconder?

Eu poderia jurar que já os vi, aos três, trocando cartões de visita em pleno terminal de embarque da Portela. Designam-se a si próprios por "The Wanderers" e têm apertos de mão codificados. Mas, sendo eu cretense (-ino?), mentiroso compulsivo, como poderia o Amável Leitor acreditar em mim?

Dúvidas e mais dúvidas: É ou não é verdade que o judeu errante apareceu em 1505 na Boémia, indicando a um tecelão de nome Kokot, o lugar exacto onde o seu avô enterrou um tesouro? Que tesouro procura Pacheco Pereira? Será que o judeu errante sabe algo sobre Paulo Portas? Ou será Paulo Portas um simples moinho de vento? E não será Ahasverus o verdadeiro nome de Pacheco Pereira e Cartaphilus o de Paulo Portas, usando ambos a linguagem dos P's para armar confusão? E será que podemos evocar os seus nomes em vão? Todos os Nomes?

Para terminar, e a pedido de vários leitores, um pequeno poema de Vinicius ("Judeu Errante"), dedicado a todos nós, os commuters errantes e solitários-e-estúpidos-que-podiamos-combinar-com-colegas-porque-era-bom-para-o-ambiente-e-saía-mais-barato, sem lugar para estacionar o carro:

"Hei de seguir eternamente a estrada
Que há tanto tempo venho já seguindo
Sem me importar com a noite que vem vindo
Como uma pavorosa alma penada

Sem fé na redenção, sem crença em nada
Fugitivo que a dor vem perseguindo
Busco eu também a paz onde, sorrindo
Será também minha alma uma alvorada

Onde é ela? Talvez nem mesmo exista...
Ninguém sabe onde fica... Certo, dista
Muitas e muitas léguas de caminho...
Não importa. O que importa é ir em fora
Pela ilusão de procurar a aurora
Sofrendo a dor de caminhar sozinho"