Valores de Mercado 005/03: Amor e consumo
"Diz-me quanto me compras, dir-te-ei quanto me amas"
O Amor é uma chatice (a pain in the ass) para qualquer regime político ou económico. Numa economia de mercado é particularmente irritante, porque as pessoas passam de consumidoras (o papel certo) para (brrr!) amantes.
Os amantes só consomem quartos de hotel, jantares à luz das velas e transportes. Ou seja, os amantes não consomem tralha. E não se passeiam nos centros comerciais (quer dizer, enfim, há gente capaz de tudo). Limitam-se à cama e ao pôr-do-sol. Não é por acaso que os grandes cantores do Amor são os poetas, que estão apenas um degrau acima dos homeless e arrumadores de carros (julgo saber que as empresas de estudos de mercado não entrevistam nenhum destes grupos sócio-profissionais). Alguém que ama verdadeiramente não encontra nada nas montras que expresse com dignidade o seu amor. Tudo parece barato e rasca, feito industrialmente para o amor dos outros.
Tinhamos (a sociedade), portanto, um problema: como passar da estimulação mútua improdutiva para a estimulação da economia. Como solução, foram tomadas as seguintes medidas:
A) No Natal chutou-se o incómodo aniversariante Menino Jesus ("quem é esse?", perguntam as gerações mais novas) para detrás da vaca, substituindo-o pelo extravagante funcionário de entregas ao domicílio.
B) Instituiu-se o dia de São Valentim, para criar uma pressão social que obrigue os amantes a saltar da cama e irem comprar a primeira coisa que lhes aparece;
C) Desvalorizou-se o Amor, em favor do Sexo e do Prazer (físico). Enquanto o Amor ocupa as 24 horas do dia, todos os dias, o Sexo, em princípio, tem uma duração um pouco mais limitada, e entre os momentos de Sexo, os consumidores já podem ir passear para o centro comercial;
D) "Quem o feio ama, bonito lhe parece": frases como esta são contrárias ao espírito do mercado. Você não é tão feio se escolher os produtos certos. Ao estimular o Sexo (no pun intended, honni soit qui mal y pense), abriu-se o vasto mercado do corpo e da beleza feminina e masculina;
E) Como o Amor se transmutou em amor, passou a poder ser idolatrado, isto é, passou a ser justificada a sua expressão por meio de objectos de lata e, por extensão, de qualquer tralha imaginável;
F) As frases que se diziam na cama e ao ver o pôr-do-sol, ou seja, na intimidade, foram publicitadas em postais cor-de-rosa e, por essa via, ridicularizadas e banalizadas (ridicularizadas e banalizadas mesmo!, não me venham com citações do Fernando Pessoa); como o Amor era eterno mas a imaginação limitada, o comum dos mortais viu-se na contingência de deixar de falar de amor e limita-se a comprar qualquer coisa ("não sei o que lhe hei-de comprar") para aquela pessoa por quem se cruza por vezes, sabe vagamente o nome e lhe parece que vive lá em casa, por algum motivo que lhe escapa;
G) "O melhor do mundo são as crianças": esta sim, esta é uma frase com espírito de mercado. E convém calá-las com qualquer coisa, quando fazem aquelas cenas no supermercado;
H) Comprar é a melhor terapia para gente só, feia, gorda... toda a gente tem algum problema que se resolve com compras; há ainda um reduto de pessoas felizes que resistem ainda e sempre ao invasor, mas estamos a tratar de as deprimir;
I) Convenceram-se as franjas do sistema que deviam expressar radicalmente as suas diferenças, não tomando banho, em alguns casos, não depilando os sovacos, noutros, usando roupas demasiado estranhas, ainda em outros. Isto torna-as exóticas mas inofensivas, e sem perigo de contágio.
Eu sei que o mundo é muito mais complexo, mas este post só pretende comemorar o início da época natalícia.
E eu sem dinheiro...
PS: Claro que se eu tivesse dinheiro, poderia comprar um casaco Max Mara, como muitos gostariam.
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