terça-feira, abril 27, 2004

Apito brilhante

Como acontece frequentemente com os espíritos sensíveis, a contemplação e a compreensão do Belo gera em mim uma angústia, um marejar dos olhos que, acto continuo, se transmuta num soluço de felicidade. "You said to me once that pathos left you unmoved, but that beauty, mere beauty, could fill your eyes with tears."

Qualquer arte tem momentos em que se inscreve na esfera do divino. Esses momentos deveriam ser reservados apenas para os deuses e seus protegidos.

A falta de vergonha é uma arte pouco compreendida mas muito praticada, e temos bons mestres em Portugal. Penso que seremos dos melhores a nível mundial.

Um exemplo de pura perfeição artística é o de ligar Planos Especiais de Realojamento à aquisição de camarotes no estádio do Boavista. Está ao nível, por exemplo, da estranha doença que atacou as árvores em linha recta na Urbanização de Santo Estêvão, por coincidência no local para onde estava planeada uma estrada.

Quando li esta notícia (obrigado, do Portugal Profundo) fiquei absolutamente siderado perante a beleza do conceito, e a custo estanquei as lágrimas.

Acho que deveriamos fuzilar os seus autores imediatamente. A nenhum artista que atinge a beleza suprema deveria ser dado o direito de viver para além da concepção do objecto. O resto da sua vida acaba sempre por se tornar um aborrecimento para ele e para quem tem de o aturar.

segunda-feira, abril 26, 2004

A Ponte Nova

Parabéns a nós, por o Tiago Torres da Silva ter finalmente decidido provar as águas da blogosfera, mesmo contra os horrores da tecnologia. Entre Portugal e o Brasil, precisamos de pontes sem sentido único.

Onde estavas no 25 de Abril?

Não me lembro em que ala do espermatozóide. Nem me interessa. E tu, onde estavas no 24 de Julho?

E no dia 1 de Maio? A ver a passagem da caravana de novos países na UE e nós para aqui, a ganir.

E no 13 de Junho? Desculpem, mas chego de fim-de-semana à noite, não posso votar (I'm sooo sorry...).

E onde estarás no 5 de Julho? Não sei, mas certamente bêbado a comemorar o fim do Euro, a derrota da selecção e um pouco de paz e bico calado sobre futebol, por favor!


sexta-feira, abril 23, 2004

Evolução / Revolução

Dou o meu modesto contributo para novas formas de ver o 25 de Abril:

25 de Abril Sempre - 25 de Abril sem prec
Otelo - Condomínio fechado
As conquistas de Abril - As conquistas de Novembro
Grândola Vila Morena - Bronze na Quinta do Lago
Chaimite - Jeep para ir ao monte no fim-de-semana
Povo - Povo (o mexilhão é sempre o mesmo)

Idade Média

É estranho ver como os injustiçados da vida são os primeiros a ir berrar para a porta do tribunal contra a justiça, se esta incomoda algum dos seus fidalgotes feudais.

Na verdade, não é estranho. É apenas triste.

quarta-feira, abril 21, 2004

Coisas

Fitzcarraldo
Um saleiro
Metropolis
Um vinho no Meson Andaluz
Uma gravata
Fanny and Alexander
Um gravador de DVD
Umas meias
Uma carta das finanças
Um e-mail que não veio
SMS fácil
Um dia que acabou.

Amanhã não é hoje. Hoje já é amanhã.

terça-feira, abril 20, 2004

Hoje

Tomemos um dia como o de hoje, por exemplo, em que nada acontece. Que direi, um dia, deste dia? Que nem me lembro dele? Que passou, como os outros? Que, agora que falas nisso, houve qualquer coisa naquele dia que passou imperceptível mas que, quiçá, foi um ponto de viragem na história do mundo e só o descobrimos agora?

Não conhecemos este dia. E quando o conhecemos, já morreu. RIP.

segunda-feira, abril 19, 2004

Moda, costume e folclore

O costume é uma moda que soube envelhecer. Não nasce ex nihilo, não é imutável e tem prazo de validade. Depende do caldo de cultura e natureza em que surgiu e de condições arbitrárias que o levaram a ser reconhecido e legitimado pela comunidade.

O folclore é o costume fora de prazo, desadaptado das circunstâncias. É memória e nostalgia, é "retorta de alquimista, mapa do mundo distante".

E depois temos a globalização. É fácil jantar na Tailândia na segunda, na Russia na terça, no Japão na quarta, em Espanha na quinta, na Argentina na sexta e na Itália no sábado. E até posso ir a pé. Mas, Jacinto cansado de tanta civilização, talvez queira no domingo um simples prato de arroz doce. A tragédia cultural da globalização só acontecerá se nos quiserem mudar a receita do arroz-doce.

Por mais que goste de sushi, nunca o saberei verdadeiramente apreciar, porque me falta toda a cultura que o produziu. Mas, ao comer sushi, estou também a tomar consciência das diferenças culturais. Aconselho vivamente todos os frequentadores de restaurantes japoneses a munirem-se de qualquer objecto de registo de pensamentos para que possam anotar o que é ser português quando a dúvida se instalar sobre qual o molho correcto do sushi.

As Maltesinhas de Beja é um dos muitos soldados espalhados por Portugal que montam guarda ao arroz-doce. Talvez não precisemos de generais, mas precisamos de estratégias que façam as papas de sarrabulho marchar junto do pão-de-ló de Alfeizerão, cantando em uníssono com o abade de Priscos e dando alento aos peixinhos da horta.

Marchemos, portanto!

sábado, abril 17, 2004

Nós aqui tão longe...

Compras na FNAC numa tranquila manhã de sábado.

"Por motivos alheios à nossa vontade, solicita-se aos nossos estimados clientes que abandonem imediatamente a loja pela saída mais próxima. Por favor sigam as indicações dos nossos funcionários."

"Estimados clientes, por motivos de segurança, somos obrigados a encerrar imediatamente o estabelecimento."

Detesto a Al'Qaeda.

sexta-feira, abril 16, 2004

Matrix

Mais umas páginas do Manual de Marketing.

É estranho que o Portugal eterno só tenha castelos de 1940... Tratou-se de um restyling? De um reposicionamento do produto, num mercado de ideias únicas em monopólio de 50 anos?

O pão alentejano de Lisboa é melhor que o de Beja, porque os alentejanos suburbanos têm esse conceito mítico do pão, e compram-no a quem o traz de Mértola, da Vidigueira ou do Escoural. Em Beja, urbana parola, come-se carcaça de padaria ou do Modelo.

"O costume natural dos folares" é paradoxal nos termos. Não há "costume natural". Há costumes que são resposta a condições sociais, físicas, tecnológicas específicas. Mudamos essas condições, mudamos os costumes, ou mantémo-los, como marcos históricos e actividade vagamente kitch para consumo turistico.

Todos temos valores, até o "inner circle lisboeta". As elites portuguesas têm a ética da ganância, a desresponsabilização perante as suas acções, a autopreservação a todo o custo. Os suburbanos têm valores contraditórios da terra de onde vieram, da TV que os alimenta e dos maus exemplos que vêm de cima.

Eu não preciso de comer folar às escondidas, envergonhado. Porque não gosto. Nem gosto de ovos de chocolate. A globalização entra-me pela casa nos meus termos. Entra-me em forma de tatamis e chouriço beirão, trasmontano ou alentejano, livros da Amazon e marron glacé, produtos fair price e consumir Madrid como consumo Lisboa. Não troco isto por um folar. Desculpa, António.

A Segway serve para mostrar que há modelos de desenvolvimento alternativos dentro do mesmo modelo da economia e valores de mercado. Não interessa se em concreto se adapta aos nossos buracos. Cabe-nos, a nós, encontrar um caminho, com novos buracos.

"Às almas dilaceradas pela dúvida e o negativismo do século procurámos restituir o conforto das grandes certezas. Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua história; não discutimos a autoridade e o seu prestígio; não discutimos a família e a sua moral; não discutimos a glória do trabalho e o seu dever." Corolários do Manual de Marketing.

Portugal será eterno. Enquanto durar.

quinta-feira, abril 15, 2004

Tábua Rasa

Já o disse aqui: Portugal nunca existiu. Portugal é uma tábua rasa criada por Salazar sobre a qual o génio de António Ferro criou heróis, inimigos, cultura e história. E polícia de bons costumes. Por duas ou três gerações, foram reproduzidas essas crenças e costumes inventados, até se tornarem património genético, aparentemente imutável, aparentemente sangue do nosso sangue.

Nos anos 40 do século XX, na Assembleia Nacional, defendia-se que instruir o povo era perigoso, porque lhe dava "ideias". Quando o conhecimento é a principal riqueza das nações, o gráfico abaixo mostra a verdadeira extensão da tragédia que nos espera. A tábua rasa está aí bem visível.

É o conhecimento que nos permite escolher. Mas entre o analfabetismo do Portugal profundo e a iliteracia e a anemia de valores do Portugal suburbano, o que nos resta é, certamente, rezar.

Não se trata de saber, António, se os ovos de chocolate são melhores que os folares. Trata-se de saber por que motivo eu escolho uns ou outros. Primeira página no manual de marketing.

Nós somos consumidores urbanos, António. Já caímos do paraíso há muito tempo. Reinventá-lo é matá-lo. O pão alentejano que como em Lisboa é melhor que o de Beja. Já não se pode viver o teu paraíso telúrico para além do fim-de-semana ou uns dias mais nas festas de Agosto.

Hoje há opções. E é nas tua opções individuais que decides que globalização queres ter em tua casa. Apenas isso. E se muitos preferirem os folares, como tu, serão os folares a esgotar no supermercado (do Corte Inglès?). Segunda página do manual de marketing.

E quem tem uma 4L não tem de ficar infeliz com o BMW do vizinho. Pode comprar uma Segway.

quarta-feira, abril 14, 2004

O Paraíso Perdido

Roubava massa crua do pão da minha avó. Fazia torradas à lareira. Prendia abelhas em caixas de fósforos. O meu avô tirava água do poço com a cegonha e eu, importante, de sacho em punho, mostrava à água o melhor caminho para as hortaliças. Fazia corridas com carrinhos de linhas e rodelas de sabão. Era o melhor da turma e a professora oferecia-me livros de histórias. O Menino Jesus dava-me um pequeno brinquedo, quando não se esquecia.

Fui tão feliz quanto uma inocência sem traumas pode desculpar.

Fui feliz no Portugal de uma aldeia alentejana, pobre e honrada, como todas. Fui feliz do lado de cá, dos sem terra, dos que contavam histórias para acordar, que envolviam cavalos e GNR. Mas eu só conhecia o gato das botas e o Faísca, e era feliz por isso.

Esse Portugal onde fomos crianças felizes, António, esse Portugal das aldeias mais portuguesas de Portugal, esse Portugal criado pelo senhor que caíu da cadeira, esse Portugal miserável não poderia existir quando existiu. Será que alguém um dia olhou para ti e pensou: "irás também tu um dia naquele barco, combater naquela guerra estúpida?"

Os costumes não são eternos. Adaptam-se às circunstâncias. Prefiro mil vezes o hipermercado de hoje que a meia quarta de toucinho de há trinta anos, à lareira de uma casa sem electricidade. Porque, por vezes, sou optimista, e prefiro pensar que o ar rasca que hoje invade tudo é apenas uma dor de crescimento, e vai passar.

Fomos crianças felizes num país infeliz. O único paraíso perdido é o da infância. Nada mais.

terça-feira, abril 13, 2004

Num dia de sol assim...

Era uma vez um empregado de mesa afável, sorridente, simpático, prestável, eficiente... ucraniano. Os colegas portugueses tinham-lhe um ódio de estimação e, discretamente, tentavam boicotar-lhe quer a actividade quer o estado de espírito. O gerente da esplanada decidiu que aquilo não poderia continuar e, pesaroso, chamou o ucraniano e comunicou-lhe a decisão de despedir os empregados portugueses e contratar brasileiros.

Às vezes, apetece-me que as histórias tenham um final feliz.

quinta-feira, abril 08, 2004

O pão e a educação





Este gráfico, elaborado com dados do Eurostat e relativos a 2001, mostra a percentagem de pessoas que tem, pelo menos, o ensino secundário, cruzado com a percentagem de despesas das famílias gasta na alimentação, em países da EU, ou em vias disso.

Não sei o que dizer. Não sei se deverei começar por chamar "filhos da puta..." às elites que, no governo ou fora dele, nos governaram nas últimas dezenas de anos, continuando com um "... que nos tramaram.", ou se hei-de elevar a coisa e comparar o Club Med com os países de Leste e com o seu potencial de desenvolvimento, ou se discuta o ridículo dos discursos sobre produtividade, porque não há produtividade sem uma massa crítica demográfica que tenha um nível de instrução aceitável...

É um gráfico que serve de ponto de partida para as mais variadas análises. Mas realmente, com este sol, não apetece nada.

(Gostaria de ouvir os vossos comentários, que quiserem fazer o obséquio...)

[Adenda posterior: O peso dos gastos com alimentação é inversamente proporcional ao rendimento, pelo que é um indicador indirecto de riqueza, tal como a educação. A alimentação aqui serve para mostrar que os ex-países de Leste têm um potencial que nós não temos, e que só circunstancialmente são mais pobres que nós, porque estão em processo de mudança de modelo de desenvolvimento. A Portugal falta-lhe essa "alavanca". Somos simplesmente pobres e mal-educados. ]

terça-feira, abril 06, 2004

Os loucos

Ultimamente, não tenho visto os loucos da cidade, deambulando pelas ruas, conversando com companheiros imaginários. Se calhar, nestes tempos de auticulares bluetooth e outras extravagâncias, confundem-se com aquele ali, one-man-show, gesticulando para o seu companheiro imaginário, último empecilho para o novo BM(W). Se calhar confundem-se.

Talvez o olhar os denuncie. Não sei.

segunda-feira, abril 05, 2004

A Descoberta

"Exmo (a) Senhor(a)

Caso seja um(a) caçador(a) de talentos à deriva pela blogosfera, quero pedir-lhe o obséquio de me descobrir (caso não o sejas, pira-te e não me chateis. Chô!). Tenho um emprego aborrecido e mal pago, o chefe não me compreende e estou ali a esvair-me em horas que o mundo agradeceria, estivesse eu cumprindo o meu destino de artista. Eu nasci para o Belo e para a Arte e estou atascado na pocilga da rotina administrativa, um tecido fino feito emplastro. Sou um diamante em bruto pronto a ser lapidado por quem me descobrir. Vasco da Gama (é o seu nome, não é?), eu serei o seu Cabo da Boa Esperança!

Repare na minha prosa, de humor fino e olhar canalha. Contemple como, qual Zelig, me mimetizo na opinião comum ou, quando necessário, sintetizo em frases displicentes ideias geniais de alma, disparatadas de aparência. Aprecie a inteligente distribuição de erros, apoiada numa invisível estrutura iniciática que lhe dá sentido mas que só é notada por mentes superiores, como a sua! Descubra-me, e terá aos seus pés a rota das especiarias!

Descubra-me, porra!"

[Isto é suposto ser uma caricatura, ok? Já acrescentei aqui umas aspas para a coisa ficar mais perceptível. One never knows what is in the eyes of the beholder.]

domingo, abril 04, 2004

Neo-Liberalismo



Há apenas uma grande diferença entre público e privado: no privado sabemos quanto tempo dura a eternidade.

quinta-feira, abril 01, 2004

Valores de Mercado: A Livre Concorrência

Mais um novo aumento da gasolina. Isto demonstra o nosso carácter profundamente excêntrico (nos vários sentidos) como economia de mercado, digno, aliás, de um case study aprofundado. De facto, Portugal é possivelmente o único pais no mundo em que a sã concorrência entre os actores faz aumentar os preços.

Podemos fazer um estudo sobre o assunto, mas "falta de vergonha" é uma variável a considerar desde já (posso procurar a expressão latina equivalente, para tornar o conceito mais credível).

[Adenda para o António: a economia informal não é apenas feita dos biscates de trolhas e outros indiferenciados. É feita também de cumplicidades não observáveis no topo. Devido à componente informal da economia portuguesa, a potencial cartelização dos preços deveria ser tida em conta quando se definem as regras de liberalização de qualquer mercado. Tal como a natureza tem horror do vazio, as empresas têm horror do vazio que pode ser ocupado com lucro. Não é pecado, mas o mexilhão é sempre o mesmo. Esta é a minha modestíssima opinião.]