O Paraíso Perdido
Roubava massa crua do pão da minha avó. Fazia torradas à lareira. Prendia abelhas em caixas de fósforos. O meu avô tirava água do poço com a cegonha e eu, importante, de sacho em punho, mostrava à água o melhor caminho para as hortaliças. Fazia corridas com carrinhos de linhas e rodelas de sabão. Era o melhor da turma e a professora oferecia-me livros de histórias. O Menino Jesus dava-me um pequeno brinquedo, quando não se esquecia.
Fui tão feliz quanto uma inocência sem traumas pode desculpar.
Fui feliz no Portugal de uma aldeia alentejana, pobre e honrada, como todas. Fui feliz do lado de cá, dos sem terra, dos que contavam histórias para acordar, que envolviam cavalos e GNR. Mas eu só conhecia o gato das botas e o Faísca, e era feliz por isso.
Esse Portugal onde fomos crianças felizes, António, esse Portugal das aldeias mais portuguesas de Portugal, esse Portugal criado pelo senhor que caíu da cadeira, esse Portugal miserável não poderia existir quando existiu. Será que alguém um dia olhou para ti e pensou: "irás também tu um dia naquele barco, combater naquela guerra estúpida?"
Os costumes não são eternos. Adaptam-se às circunstâncias. Prefiro mil vezes o hipermercado de hoje que a meia quarta de toucinho de há trinta anos, à lareira de uma casa sem electricidade. Porque, por vezes, sou optimista, e prefiro pensar que o ar rasca que hoje invade tudo é apenas uma dor de crescimento, e vai passar.
Fomos crianças felizes num país infeliz. O único paraíso perdido é o da infância. Nada mais.
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