quinta-feira, janeiro 29, 2004

Valores de Mercado 001/04: Aspirações

Devo confessar que, nos últimos anos, não tenho prestado muita atenção ao fascinante mundo dos aspiradores domésticos. Aparentemente, evoluiram. Agora os sacos do pó não são reutilizáveis. Compram-se, enchem-se, deitam-se fora, compram-se mais.

Aparentemente, estão a gozar comigo.

segunda-feira, janeiro 26, 2004

R.I.P. (-off)

Segundo me contam, as televisões estão a explorar o maná que lhes foi oferecido da forma vergonhosa que estaríamos à espera. Ver isto de uma forma cínica é a resposta mais simples. Mas acredito que a morte, que é a última fronteira do que é humano, é-o também para o cinismo. Ser cínico, neste momento, é ultrapassar essa fronteira, e estar ao lado daqueles para quem a ética da ganância é a única que faz sentido e que exploram os valores básicos da decência e dos sentimentos para os fins reles do costume.

Restam a indignação e o botão em off. Que cada um os use como lhe aprouver.

O Messias vem aí

Notei, com entusiasmo, que Portugal produz um grande estadista de 300 em 300 anos. Reparem: D. Afonso Henriques, D. João II, Sebastião José de Carvalho e Melo. Se as minhas contas baterem certo, algures durante o século actual teremos um lider a sério, e com forte tendência para cortar cabeças.

Alento! Já não deve faltar muito!

Pequeno manifesto dos medíocres

No programa "Directo ao Assunto", na TSF (que pode ser ouvido aqui), um dos participantes, que não consegui identificar, teve a seguinte intervenção lapidar:

"Actualmente, eu acho que o nível da mediocridade (que se mantém medíocre) subiu. E, quanto a mim, a cultura de um país deve ser medida não em termos das elites, que sempre foram muito boas (e Portugal sempre as teve muitíssimo boas) mas quanto mais alta é a mediocridade. Parece-me que em Portugal a nossa horrenda mediocridade é muito melhor do que era há trinta anos, ou quarenta anos ou cinquenta anos."

Estas frases representam o problema de Portugal (já o escrevi noutro post). Ao que este senhor chama "mediocridade" outros já chamaram "a choldra", isto é, o povo. Ao contrapor "mediocridade" às elites, ele demonstra a mediocridade das elites portuguesas, e a sua total aversão ao povo que as suporta.

Este exercício de auto-glorificação ("sempre as teve muitíssimo boas") é uma verbalização da tragédia nacional: elites inúteis, satisfeitas e fartas consigo próprias, incapazes de fazer aquilo para que são pagas por aqueles que despreza: governar, dirigir, propor destinos, inovar, descobrir, transmitir valores de civilização. E não pagam impostos.

As nossas elites económicas são donas dos pasquins televisivos. As nossas elites culturais riem-se da ignorância e fazem manuais escolares com o Big Brother. As nossas elites políticas gerem o Estado como coutada pessoal de amigos e familiares.

"Horrenda mediocridade"? Desculpe mas, meu caro senhor, indo Directo ao Assunto, vá à merda.

sábado, janeiro 24, 2004

Um post adulto

Pergunto-me se a audiência do blog aumentaria se incluisse palavras como "sexo", "porno", "gajas", "mamas" ou "filmes para adultos". Ou, para uma audiência mais global, "hardcore", "porn", "xxx-rated", "babes", "big tits" ou "adult movies".

A tentação é grande, mas, como é evidente, nunca o faria. Não tenho lata (nem fotografias).

For the english-spoken readers: this post is just an audience test. You can safely leave now. You can't find here what you are looking for. Sorry I am wasting your time (well... if you are searching for these words, it means you have plenty of it, anyway).

segunda-feira, janeiro 19, 2004

Gordura Operária

Antigamente, quando o socialismo era a alternativa ao capitalismo, os capitalistas eram caricaturados como porcos gordos em smoking, a corrente do relógio de algibeira atravessando a rotunda pança. O operário, minúsculo e franzino, era facilmente esmagado por aqueles dedos papudos.

Agora que o capitalismo ganhou, o capitalista tornou-se elegante, ingere alimentos hipocalóricos e esfalfa-se no ginásio. O proletário, em contrapartida, tornou-se um porco gordo, alimentado a junk-food e junk-TV.

O pobre sempre quis ser gordo como o patrão. Agora que a sociedade capitalista lhe satisfez o capricho, queixa-se.

Mal agradecido.

Fat Junk Science

"The assertion that heavy marketing of energy-dense foods or fast food outlets increases the risk of obesity is supported by almost no data."

"No data have yet clearly demonstrated that the advertising on children's television causes obesity."

Excertos de uma carta confidencial da Administração Bush à Organização Mundial de Saúde, a propósito do seu relatório que liga junk-food à obesidade e que apela aos governos para que sensibilizem a opinião pública para essa epidemia. Um draft do relatório (a publicar em Maio) pode ser encontrado aqui, e a notícia sobre a carta pode ser encontrada aqui, por exemplo.

Pelos vistos, andávamos todos enganados. Redondamente enganados.

Arrumação

Nunca mais volto a encontrar uma coisa que arrumei.

Atracções turísticas II

Não posso deixar de repetir o mesmo fascínio cada vez que descubro electricidade e água canalizada quente nos lugares mais recôndidos do planeta, onde a civilização ocidental mal chegou (por exemplo, em certos hotéis do Porto).

ok, ok, bad joke...

domingo, janeiro 18, 2004

Brisa Estranha

Vim de Lisboa ao Porto sem encontrar obras na autoestrada, o que, convenhamos, é pouco menos que um choque cultural. Muito suspeito.Que estarão eles a tramar?

[Primeiro post enviado do telemóvel. Que preço terei de pagar por tal luxo?]

sexta-feira, janeiro 16, 2004

Atracções turísticas I

Um velho observa a rua que todos os velhos observam, coça a nuca que todos os velhos coçam, à soleira da porta de onde todos os velhos espreitam. A rua de todos os velhos neste velho é igual a todas as outras ruas. Tem fitas e bandeirinhas festivas. Bailarico dos bombeiros, na certa.

O velho à soleira da porta está dentro de uma espécie de jaula, em rede metálica, que lhe protege a porta e a vida de granadas ou outros cocktails. A rua festiva, deserta. Ali, só os loucos andam a pé.

Enquanto passa outra patrulha do exército, pergunto-me se o velho ainda vê a jaula, e se as bandeirinhas da independência lhe puxam o pé para a dança.

Venho de um país católico. Esta é a minha rua. A outra é dos outros. Perigosa.

Memórias. Belfast, Falls Road.

quarta-feira, janeiro 14, 2004

Última hora: ministro não se demite, jornalistas chocados

Lisboa, 14 de Janeiro. A classe dos jornalistas portugueses está em estado de choque após o Ministro da Educação, David Justino, ter decidido não se demitir, na sequência de uma notícia sobre eventuais irregularidades nas suas declarações de impostos.

Sendo este o desporto favorito dos jornalistas portugueses, o acontecimento provocou um misto de comoção e incredulidade generalizada. Instado a comentar esta derrota humilhante, o jornalista Paulo Gorjão prefere optar pela desvalorização do caso e assumir que se tratou de um acidente de percurso."Tal como outros antes dele, David Justino vai aprender a licao da forma mais dura", afirmou, desafiadoramente. E como se sente nesta hora difícil?, atrevemo-nos a indagar, com um grande plano sobre os olhos húmidos. "Em menos de 24 horas, evaporou-se na sua totalidade o capital de simpatia que tinha acumulado ao longo dos ultimos meses pela figura politica de David Justino", respondeu, entre soluços.

Ainda não são claras as repercussões deste caso no sistema político e na classe jornalística portuguesa. Alguns falam no fim de um regime que já dura desde que foi denunciado um ministro por eventual roubo de uma manta num avião e que teve um dos seus momentos altos há poucos meses, com a queda de dois ministros. Outros pensam que tudo se deveu ao clima de euforia e excesso de confiança em que a classe vivia até ontem, o que levou a que o jornalista envolvido não tenha tomado as precauções mínimas para garantir o sucesso da manobra.

segunda-feira, janeiro 12, 2004

A vida sem televisão I

Casa nova e experiência radical: comprar um televisor barato e atirá-lo para um canto, fora do espaço social. Riscar do menu de actividades caseiras "ver televisão confortavelmente". Heresia de duvidosa longevidade, dizem-me.

A experiência da primeira semana foi estranhíssima. Fazemos o fazíamos anteriormente mas, quando acabamos, são dez da noite, não são duas da manhã. Deduzo, por isso, que, sem televisão, o ano passa a ter 14 meses (4 horas por dia vezes 365 dias).

Outro fenómeno curioso é a desestruturação do tempo. Mesmo que não estejamos a olhar para ela, a televisão marca o ritmo da noite. Há o antes e o depois do Telejornal. Sem a televisão à vista, perdemos a noção do tempo, e para saber as horas é mesmo necessário olhar para um relógio.

Organizámos o espaço social de forma a ocupar os lugares onde o televisor poderia ficar. Agora não é possível encontrar espaço para ele, a não ser que mudemos tudo. Não compensa. O espaço também parece aumentar. O televisor é como um eucalipto que suga todos os pontos focais à sua volta. Corta-se o eucalipto e descobre-se um mundo. Outra vantagem de ter a televisão num anexo é podermos atirar para lá também as crianças dos amigos.

Manda a boa educação que se apague o televisor quando se recebem visitas. Mas é da natureza do televisor estar ligado, e não faz sentido ser de outro modo. Um televisor não é um pisa-papéis. Não é nada agradável partilhar o mesmo espaço com um televisor desligado. É como estar ali alguém amordaçado, todos fingindo que não dão por nada mas sentindo olhos acusadores nas costas. A solução é, por isso, tirá-lo de onde possa atraír o olhar.

Como ocupar o tempo e os olhos? Net, net, net. Rede wireless, à lareira. E o tradicional: livros, música e o que mais vier. À lareira.

terça-feira, janeiro 06, 2004

Consciência de Não

Uma das partes chatas das ciências sociais (há muitas, eu sei) é aquela que faz com que a análise de um fenómeno altere o próprio fenómeno. Dois e dois serão sempre quatro, e um átomo reagirá sempre da mesma maneira a uma descarga de energia. Mas o comportamento de um indivíduo é sempre influenciado por saber que está a ser observado.

Os tiques dos amigos (especialmente os seus bordões de linguagem) são um campo fértil de análise. Há expressões que identificam pessoas, e fazem parte do nosso afecto por elas. Expressões que associamos a alguém, ditas por terceiros, despertam em nós reacções automáticas, como um cheiro de infância.

Ora, é justo (e benéfico) revelar a alguém que amamos essa sua particularidade? A maioria das vezes a revelação conduz à mudança do comportamento, suprimindo a expressão. Mas, como a coisa não é automática, os primeiros tempos serão muito difíceis. Já repararam como nos sentimos patetas quando a mecânica da fala está em pleno movimento, imparável, e nós, horrorizados, percebemos que não queremos dizer aquilo?

Este "conhece-te a ti mesmo" imposto do exterior pode ser traumatizante. Utilizado sem sensibilidade, pode ser cruelmente devastador. O último post do Aviz é elucidativo. Ele mostra que o meu insensível exercício contabilístico pode ter provocado efeitos indesejáveis. Cada vez que o FJV escrever "não" vai fazer soar uma campainha, como aqueles indivíduos hipnotizados que são programados para uma certa reacção cada vez que alguém bater palmas.

Estou muito embaraçado pelo meu uso irresponsável da ciência.