O meu Amável Leitor já se terá cruzado com uma daquelas criaturas que aparentam viver no propósito de dissecar, analisar e, em geral, escarafunchar nos nossos traços de personalidade mais particulares, com o fim último de os extirpar como a um dente podre. Chamam Amizade a essa nobre tarefa. É inútil explicar-lhes que as pancadas de cada um devem ser acarinhadas e mesmo acompanhadas de reforço positivo (um torrãozinho de açucar, por exemplo), porque são elas que salpicam de cor o cinzento dos nossos dias (suspiro).
Um destes dias o Amável Leitor tem a mirabolante ideia de convidar uma dessas criaturas para almoçar. Pega no telefone e...
- Olá, vamos alm...
- "Olá"??? Esse "Olá" dito assim, nesse tom, isso traz água no bico. Sim, que eu já te conheço muito bem. É mesmo o tom de "Olá" que usas quando queres algumas coisa. Realmente, Jorge, é mesmo típico de ti! És tão previsível! Repara como tu... (... duas horas depois...) E afinal porque telefonaste?
O Leitor acorda de repente e dá-lhe para bater palmas mas repara que não está no fim da peça. É apenas a sua deixa para dizer alguma coisa. Desacautelado, suspira de alívio neste final do arrazoado: uma pergunta simples que exige uma resposta simples e imediata. Nada mais errado. Deverá, antes do mais, entender que não se trata de uma pergunta, mas de uma estratégia para ganhar fôlego e obter mais munições (dadas pelo Leitor, seja qual for a sua resposta). Saiba que está encurralado. Nenhuma resposta é suficientemente inteligente, subtil, sarcástica, simples ou singelamente verdadeira para calar a criatura.
A única solução possível é a fuga. Se ligou de um telemóvel, provoque ou simule problemas de rede. Se ligou de um telefone fixo (erro crasso!) grite "ai as torradas!" e desligue.
Para a próxima, não telefone, envie um SMS. Marque o almoço para uma esplanada com vista de mar e disfrute à vontade da amizade que a criatura construiu para ambos (não se preocupe, que o sol entorpece-lhe a veia psicanalítica e ficam livres para falar de arte, ciência, viagens...).
Pode ser muito agradável ter criaturas assim como amigas. Basta analisar, dissecar e, em geral, escarafunchar nos seus traços de personalidade mas mantendo o bico calado.
(Cito Groucho Marx de memória: "Mas chega de falar de mim. Vamos falar de si. O que é que você pensa de mim?")