Era uma vez uma família inglesa que descobriu a casa dos seus sonhos em Portugal, junto ao mar. Previdente, observou que o local era sujeito a cheias periódicas, mas não se intimidou. Planeou e construiu um sistema de protecção, e quando as primeiras cheias chegaram, estava preparada.
O local também atraíra famílias portuguesas, que construiram as suas casas nas proximidades. No entanto, como tinham conhecimentos na Câmara, puderam erguer grandes moradias num local mais baixo e aprazível que, por coincidência, era considerado leito de cheia, ao contrário da casa dos ingleses. Os portugueses não tomaram quaisquer medidas de prevenção. Seria preciso muito azar para que uma inundação chegasse aos seus terrenos, pensaram.
Outras famílias construiram casinhas clandestinas para segunda habitação, mais afastadas. Sem muito a perder, e assumindo igualmente que as águas nunca chegariam tão alto, mantiveram-se irresponsavelmente despreocupadas.
Nesse ano a pluviosidade foi um pouco superior ao normal para a época, provocando inundações ligeiras em todo o país. Durante o período crítico de chuva, a família inglesa reforçou a vigilância dos seus sistemas e fez ajustamentos pontuais. Nunca a sua propriedade esteve em risco de inundação.
Entretanto, as famílias portuguesas que construiram no leito de cheia cairam em si e tentaram atabalhoadamente mudar o curso das águas, mas era demasiado tarde.
Alguns ainda conseguiram salvar parte dos seus haveres. Nas noites seguintes, os seus rostos chorosos de vítimas inocentes apareceram nos telejornais. Alguns bramavam contra as promessas não cumpridas da Câmara. O Governo prometeu subsidiar a reconstrução.
As famílias das casas clandestinas levaram os seus haveres encosta acima, após o que começaram a construir uma protecção, mas de forma amadora, ignorante, não planeada, inconsistente. O entusiasmo inicial rapidamente esmoreceu e, para elas, o pior já tinha passado. Para quê esforçarem-se mais para prevenir um mal que talvez não voltasse a acontecer?
Estas cheias, não sendo excepcionais em volume, e tendo sido previstas pelos serviços metereológicos, causaram apesar de tudo diversos mortos, que foram arrastados pelas águas.
É necessário porém enaltecer a ajuda prestada pelos membros da família inglesa. De facto, foi graças à sua acção profissional que muitas casas cujos donos estavam ausentes puderam ser salvas.
Foram também eles que, com risco da própria vida, salvaram várias pessoas à beira do afogamento.
Mais uma vez a tragédia estúpida bateu-nos à porta. Mais uma vez pudemos observar como um pouco de planeamento, estudo e profissionalismo, ela poderia ter sido evitada.
É este o nosso fado. Somos assim, contra ventos e marés. Somos assim, porra.