sábado, junho 05, 2004

Consumo

Chegou a hora de abertura do hipermercado. Os produtos, que saltaram das prateleiras e passaram a noite em jovial confraternização, regressaram aos seus lugares e preparam-se para mais um dia em parada. Os novos, pouco habituados ao ambiente, contêm o riso com dificuldade. Aos mais velhos, a vida ensinou a postura grave mais conveniente, que alguns matizam com cinismo (o Sunny Delight, por exemplo), outros com desdém (todos os light), outros com compaixão, apesar de tudo (o Ovomaltine).

Dentro de segundos, quando as portas abrirem, hordas de humanos vão entrar para "fazer compras", actividade que consiste na aquisição de um conjunto de produtos, cada um dos quais escolhido com uma certa racionalidade, seja ela qual for. A convicção dos consumidores de que estão a escolher um produto é, para os produtos, uma ideia tão bizarra e hilariante que basta a sua menção a meio da noite para que o hipermercado seja sacudido por um frémito geral, seguido de outro, e mais outro. Isto por vezes dura horas. Todo o edifício range. Os iogurtes e os refrigerantes são particularmente sensíveis à piada e, não raro, rebentam de puro gozo. Todas as manhãs os corredores são minunciosamente vistoriados para serem apagados quaisquer traços da diversão nocturna.

Os produtos não percebem como os humanos podem ser tão... tão... tão-difícil-que-é-encontrar-uma-palavra-para-os-descrever. Andam por ali num corrupiupiupiu, galinhas tontas, escolhendo cada grão para encher o papo (pára que eu já não aguento, articula convulsivamente um Danoninho lá ao fundo).

Os consumidores realmente acham que estão a escolher, e não percebem que são os produtos que os estão a escolher a eles. Não percebem que, quando olham para um produto, estão a olhar para um profissional, treinado e aperfeiçoado durante meses ou anos nas melhores escolas, com o fim último de escolher o consumidor que mais lhe agrada. O killer instinct contra a pacatez ignorante. Cada dia num hipermercado é uma hecatombe sem honras de abertura no telejornal.

Se não acredita, faça a seguinte experiência: pegue no pacote de leite especial cálcio que escolheu para a criançada, olhe-o, olhos nos olhos, se conseguir, e diga-lhe com convicção: "eu não sou influenciado pela publicidade" e "marketing? o que é isso?". Um quase imperceptível frémito sacode o pacote. Pode abri-lo: está morto. Qualquer destas frases é uma piada mortal a que nenhum produto resiste. Agora, deixe de dizer disparates e vá escolher (hihihihhiahahahaha) outro pacote.