sexta-feira, setembro 12, 2003

Teoria do buraco da rua

Um buraco numa rua em Portugal nunca significa apenas um buraco numa rua. Uma buraco numa rua possui uma temporalidade muito própria, a que os historiadores da nova história chamariam "la longue durée", os ciclos de longa duração. Uma Câmara Municipal em Portugal nunca tapa um buraco pequeno, espera sempre que ele atinja um certo nível de dignidade ou, mais prosaicamente, seja suficientemente grande para a) provocar uma tragédia; b) dar algum dinheiro a ganhar ao construtor civil actualmente nas boas graças do presidente da Câmara (e do tesoureiro do partido).

A tragédia irá acontecer, mais cedo ou mais tarde. Enquanto esperamos calmamente por esse dia, os principais afectados (os moradores da rua) escrevem cartas sucessivas ao senhor presidente, que as aproveita para se divertir com o estilo das missivas e os erros ortográficos (estamos a falar da minoria de presidentes instruídos). Por vezes, almas mais exaltadas desabafam nas assembleias municipais, mas trata-se apenas de um momento de catarse, sem quaisquer efeitos práticos. Mesmo que o presidente se interesse pelo assunto, os serviços encarregam-se de lhe arrefecer os ânimos (nunca ninguém viu um serviço público português a funcionar com o objectivo de resolver um problema, a não ser que seja pressionado para o fazer).

Neste ponto, temos a questão do recurso à justiça. Como o Estado em Portugal é inimputável (olha-se para os dirigentes e percebe-se porquê), só alguém tolo ou mal aconselhado o faz. Caso o faça, a) pede ajuda a um advogado amigo, que lhe faz um desconto mas não resolve o problema; ou b) procura um advogado nas páginas amarelas (quase todos têm os dentes caninos afiados e dormem de dia), que diz que faz, mas não faz porque, como não é íntimo de ninguém, nem pertence à Maçonaria, não tem acesso às estruturas de poder e decisão; ou c) contrata um escritório conceituado, é servido por um estagiário, tem uma dívida para a vida e não se livra do buraco. Seja qual for a situação, o caso prescreve sempre (a figura da prescrição nunca favorece o vizinho do buraco, mas sim o Estado ou algum dos poderes fácticos), e o buraco alarga.

Estamos portanto no buraco (pelo qual o construtor civil tem especial carinho "meu Deus, como tu cresceste!"). Os vizinhos, fartos de partir carros e pernas, estão desesperados, já não sabem o que fazer. Quem devia tapar o buraco, não o tapa, quem devia obrigar, não obriga.

Neste momento, alguém está a tomar um banho de imersão e, repentinamente, exclama: "Eureka! Vamos chamar a TVI!". Por algum fenómeno físico mal explicado (a que não serão estranhos os 48 anos de Estado Novo) o som curva e dirige-se em linha recta para a câmara municipal. A TVI, montada no seu cavalo alado, chega num ápice mas... onde está o buraco? "Buraco? Qual buraco? Não sei de nenhum buraco!" diz o presidente da câmara. "Isso são manobras de baixa política da oposição!", vocifera. Entretanto, as senhoras de bata e chinelos estão a ser entrevistadas por outro reporter. "Ai o nosso presidente é um amor! venha lá um beijinho! Veja lá, meu caro senhor [reporter] que o nosso presidente não demorou mais que vinte anos a tapar-nos o buraco" (seguem-se uns trocadilhos brejeiros em fundo).

Contabiliza-se assim mais uma brilhante vitória da TVI, defensora dos humilhados, ofendidos e outros consumidores de Sonasol limpeza limão. Na sombra, o construtor civil folheia um catálogo da Mercedes.

Entretanto, noutro planeta, o Bloco de Esquerda exige uma vistoria a todos os buracos do país, incluindo os das minas e dos queijos. O PSD afirma que os buracos são todos do PS ou são feitos por granadas que sobraram da guerra colonial, o PS faz um buraco no Rato e descobre vestígios arqueológicos sobre cuja relevância se degladiam internamente e o Presidente da República apela à serenidade e à coesão nacional (se bem se percebeu o discurso).