Cada casa será uma biblioteca
Noto com perplexidade que os amantes dos livros, que têm Gutenberg como seu cupido particular, têm dificuldade em imaginar um mundo sem livros em papel como suporte da literatura. É estranho. Pedro Mexia, no artigo da Grande Reportagem sobre "A Cultura no Futuro" não hesita em garantir que "cada casa será uma discoteca" e que "cada casa será uma cinemateca". Mas não (horror), cada casa não será uma biblioteca.
Porquê?
"Porque a maioria dos leitores de literatura, [estão] habituados e mesmo fascinados com o contacto físico com o papel".
Hum?
Vejamos: os suportes de gravação da música e da imagem são relativamente recentes, e não se fixaram numa tecnologia e formato estável. Ao contrário, o suporte livro é simples, é (tem sido) absolutamente estável e tem um lastro histórico que o aproxima da perfeição. Penso que só as árvores não gostam de livros.
Isto significa que não poderemos substituir os livros? Claro, claro, claro que sim. Há tecnologias promissoras (OLED) que permitirão criar displays flexíveis, com acesso permanente a "Bibliotecas de Alexandria tecnologicas", tão fáceis de transportar como um livro. Uma criatura destas contém capacidades fáceis de imaginar por cada um, não é necessário inventar capacidades circences de cruzamento de informação. Para mim, basta-me evitar o arrependimento de levar a Divina Comédia para a praia, quando aquele mar está a pedir Guerra e Paz. Lamento, mas dispenso a sensualidade táctil do papel.
Esta discussão torna-se muito mais interessante (e alarmante) se introduzirmos outro parâmetro: que será da literatura sem papel? Um livro de ficção deve ser lido, canonicamente, do princípio para o fim. Mas se, através de hiperlinks, o princípio, o meio e o fim forem conceitos sem sentido? Se múltiplos fins e inícios estiverem disponíveis? Se forem incluídos hiperlinks para o exterior? E se um objecto literário for um "work-in-progress" com múltiplas versões? Será isto literatura? Ou a literatura também se define pelas limitações que o papel impõe?
A maioria dos escritores actuais utiliza o computador para escrever, com as vantagens inerentes. Temos por isso melhores escritores? Talvez não. Mas talvez devessemos exigir-lhes mais.
Ao definir que "o papel continuará o suporte principal da literatura", Pedro Mexia está, implicitamente, a definir que a natureza da literatura se manterá. Tenho as mais sérias dúvidas, quer quanto ao papel, quer quanto à natureza.
PS1: Pedro Mexia faz ainda uma referência ao CD como objecto de oferta, criado à medida (ou seja, o que hoje já fazemos). Sugiro que também o CD irá desaparecer. No futuro não irei oferecer CD's. Irei oferecer acessos, definidos por um conjunto de faixas num determinado alinhamento. Mil e uma empresas oferecerão esse serviço.
PS2: No futuro, tal como no presente, não será necessário chegar a casa para consultar dados sobre James Joyce.
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