Memória a crédito
Tento imaginar um velho sem memória, uma tábua rasa pontuada aqui e ali por uma morte, um nascimento, uma doença grave. Um velho que existiu, mas sem ser capaz de provar que viveu. Hoje tem setenta anos, ontem tinha vinte. Onde estão esses cinquenta anos? Será que tudo se resumiu a um longo dia de trabalho seguido do empurrar de um carrinho pelos corredores de um hipermercado sem fim?
Que memórias estamos nós a amealhar para o nosso Inverno? Nós, os sem vidas extraordinárias, cuja relação mais séria e duradoura não se chama amor, mas dívida ao banco. Nós, os heróis das mil vidas na Playstation. Nós, os que fazemos de cada dia uma experiência nova (já conhece o novo Sonasol?). Nós, pistoleiros do cartão de crédito, mais rápidos que a própria sombra, incapazes de viver sem franquia. Nós, que nos amamos sem nos conhecermos (sim, temos quatro televisores em casa). Nós, que fazemos da nossa vida uma perpétua delegação da competência de viver. Nós, os da felicidade tabelada ao minuto e promoções de quantidade. Nós, consumidores consumidos no consumo.
Que vamos recordar no nosso Inverno? A paixão com a princesa Carolina em fotos indiscretas? A forma limpinha como aniquilámos todos aqueles invasores extra-terrestres? As piadas em sms? A tralha inútil?
A nossa memória é um extracto de cartão de crédito e souvenirs made in China.
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